Laerte Coutinho já era uma unanimidade no universo do cartum brasileiro quando, em 2010, aos 58 anos de idade, resolveu assumir publicamente sua nova identidade de gênero. A partir daí, atraiu olhares e holofotes por conta de seu novo visual: o Laerte virou a Laerte, uma mulher vaidosa, com cabelos compridos, maquiagem, unhas vermelhas e roupas bem femininas. Mas a transformação na vida da Laerte não passou apenas pela aparência. Ela se valeu de sua fama e reconhecimento como cartunista e virou uma das principais vozes da luta LGBT no Brasil.
+ Saiba mais sobre o Mês do Orgulho LGBT
O Guia da Semana conversou com a Laerte, que falou sobre auto-aceitação, preconceito e o seu olhar sobre a questão da identidade de gênero no Brasil. Confira:
Como você define sua sexualidade neste momento? Você se identifica com alguma das definições dos LGBT?
Acho que as definições tradicionais andam meio ultrapassadas, apesar de ainda serem fundamentais para a construção das identidades LGBT. Acho que “homossexualidade”, “heterossexualidade”, etc. buscam categorizar relacionamentos, mais do que pessoas - com inevitável foco moral. Se existe numa pessoa a presença de desejo por homens, qual a importância se ela é homem ou mulher? Poderíamos, como já se sugeriu, falar em androfilia, ginecofilia, androginecofilia e afilia, conforme o desejo apontasse para homens, mulheres, ambos ou nenhum. Pessoalmente, tive (e tenho, ainda) conflitos com a assunção de meu desejo inclusivo (sic) por homens. Pra mim, a conquista da liberdade dos meus sentimentos é uma luta que ainda não terminou. Nesse processo, declarei há algum tempo que era bissexual.
Por que você demorou tantos anos para mostrar publicamente sua real orientação sexual?
Por que não consegui me sentir livre em relação às construções morais com que convivi em minha formação. Tive medo, tive pânico.
O que foi mais difícil pra você nesse processo de auto-aceitação e exibição pública da sua nova identidade de gênero?
Desculpe a tautologia, mas o mais dificil é exatamente a auto-aceitação - conseguir perceber os próprios sentimentos, reconhecê-los e vivê-los. Para isso, são importantes não só os processos individuais de busca, como também os coletivos: as pessoas e grupos com que se convive.
Você sofreu muitos preconceitos depois da publicação de sua nova identidade de gênero? Como você se sentiu e se sente sobre isso?
Minha vivência de gênero vem sendo recebida com entusiasmo por parte da população trans e com simpatia em geral; acho que a parte dos preconceitos tem mostrado uma face afetuosa. Tirando um episódio ou outro, uma opinião ou outra, percebo curiosidade, respeito e vontade de aprofundar o tema. Acho que é uma questão mais disseminada e mais profunda do que eu imaginava no começo.
Mulheres trans sofrem preconceitos severos no Brasil, o que inviabiliza para muitas delas trabalhos formais, longe da prostituição ou áreas ligadas ao universo da beleza. Qual a sua opinião sobre isso?
O problema é sério e precisa ser enfrentado de todas as formas: como luta política, pela conquista de direitos civis, pela mobilização social (para derrotar o preconceito e todas as ações e discursos agressivas e discriminatórias que ele gera) e por meio de iniciativas como o TransEmprego (site com vagas de emprego para transgêneros), iniciado pela minha querida Márcia Rocha (travesti, advogada, empresária e integrante da Comissão dos Direitos da Diversidade Sexual e combate a Homofobia da OAB/SP) e de que também faço parte. É um movimento que busca estabelecer contato entre pessoas trans em busca de trabalho e qualificação, empresas que se dispõem a abrir vagas para essa população e instâncias de governo que tenham como contribuir com esse processo.
Além de ter se assumido publicamente como mulher trans , você passou a atuar politicamente a favor da causa LGBT. O que te impulsionou para isso tudo?
A militância veio naturalmente, já que nunca deixei de ser ativista, com mais ou menos ardor e clareza. Nesta parte da minha vida, está se dando uma sintonia muito gratificante entre a vontade de participar de mudanças sociais e a vivência de transformações pessoais e íntimas.
Como você vê, hoje, a articulação política da comunidade LGBT brasileira? Que pontos você acha que ainda precisam de avanços?
Faço parte da ABRAT - Associação Brasileira de Transgêneros -, uma das muitas entidades que surgiram no Brasil no contexto da luta da populacão LGBT. Acho que essa luta geral vem enriquecendo a história dos movimentos sociais no país, mostrando que direitos civis devem atender a toda a população. E que, ao contrário do que o conservadorismo insiste em afirmar, não se está querendo construir nenhum tipo de situação privilegiada. Pra mim, esse é o ponto mais importante a ser defendido.
Qual sua opinião sobre o Mês do Orgulho LGBT e outras paradas gays que acontecem no Brasil? De que forma você acha que essas manifestações interferem no olhar do público não-LGBT sobre os LGBT?
As Paradas do Orgulho LGBT são momentos fundamentais de celebração. A participação de não-LGBTs vem acontecendo desde o começo e é muito positiva. Vejo no Brasil as Paradas se disseminando, cada vez em mais cidades, e criando uma cultura que combina a luta e a festa de um modo bem particular em relação a outros países.
Você é uma cartunista muito talentosa e tem sua obra reconhecida no Brasil e no exterior. Alguma coisa mudou no seu trabalho depois que a verdadeira Laerte veio à tona?
A Laerte “anterior” - o Laerte - não era falsa, é bom que se diga. O processo que vivo não renega o passado. Da mesma forma, meu trabalho é o mesmo, embora sejam inevitáveis algumas mudanças. Mas eu também passei por questionamentos e crises na área específica do meu trabalho. Já vinha produzindo um material bem diferente, antes de começar a descoberta em relação a gênero. De certo modo, portanto, o que se deu foi o contrário: minhas histórias e meu desenho é que abriram as portas para a minha expressão pessoal.
Você já criou personagens LGBT?
A Muriel - que já foi Hugo - é meu personagem alter-ego, foi ela que abriu as portas pra que eu mesma fizesse meu movimento (veja tirinha abaixo). Já não trabalho muito com personagens. Mas mantenho, na revista Junior, um espaço chamado “Êxtase Pagão”, em que alguns personagens da cena LGBT vivem suas histórias.
Por Conceição Gama
Atualizado em 14 Abr 2014.