O mundo nem sempre foi um lugar receptivo para mulheres. Se, hoje, ainda lutamos por salários iguais e por uma representação menos sexualizada no imaginário coletivo, nos anos 50 o desafio era infinitamente maior. É preciso manter isso em mente para compreender, com todo o seu peso, a história de Margaret Keane, tal qual contada pelo cineasta Tim Burton em “Grandes Olhos”.
O filme mostra a trajetória da artista que criou os populares quadros com crianças de olhos grandes e expressivos. Casada com Walter Keane (Christoph Waltz) por necessidade, Margaret (Amy Adams) produziu as obras de arte em silêncio durante dez anos enquanto seu marido levava o crédito.
O longa, relativamente realista, não lembra em quase nada os trabalhos mais famosos do diretor, mas tem sua assinatura por todos os lados. Os olhos expressivos pintados por Keane dialogam diretamente com os personagens melancólicos, de olheiras negras, que marcaram as animações de Burton, e a escolha de uma pintora não-reconhecida ressoa em sua própria experiência como artista.
Mais bem sucedido com o cinema, o diretor escondia até pouco tempo atrás um trabalho extenso como pintor e desenhista, obra que só foi exibida ao público (numa exposição no MoMa que deve chegar a São Paulo em 2016) graças às generosas bilheterias de seus filmes.
Além disso, como é comum nos filmes de Burton, os protagonistas de “Grandes Olhos” são personagens duplos, divididos entre duas identidades: ela, entre a artista expressiva e a esposa sem voz; ele, entre homem sem talento e o artista mundialmente famoso.
Waltz interpreta Walter Keane com a desenvoltura de um showman e a frieza de um falsificador. “Ninguém saberá a diferença entre a cópia e o original”, ele prega, convenientemente, fazendo arder os ouvidos de todos os artistas na sala de cinema. Numa cena espetacular, ele se divide literalmente entre dois papéis, falsificando a si mesmo diante de um tribunal.
Adams, por sua vez, abraça o papel da pintora com intensidade, expressando nos olhos (não por acaso) a frustração de ser uma mulher num mundo onde as oportunidades são reservadas aos homens. Na cena inicial, ela abandona o primeiro marido ao lado da filha pequena e vai perseguir a carreira de artista, mas esse impulso tem vida curta e, logo, aquela mulher cheia de força percebe que não conseguirá ir muito longe sem um homem que a dê credibilidade.
A condição de Margaret é aflitiva para quem assiste hoje, mesmo que o machismo ainda seja uma realidade. Ficamos esperando que ela reaja, que responda, que exija seus direitos, pois é o que faríamos hoje – mas a verdade é que, até o momento em que ela finalmente o faz, ela não tem nenhum direito.
Burton conta sua história com um pé no freio, abrindo mão de firulas visuais e efeitos (o filme foi gravado com um orçamento surpreendentemente baixo para seus padrões) para focar sua câmera na personagem, mostrando seus conflitos e seu processo criativo. O filme não poderia não ser feminista, como não poderia ser nem um pingo mais cômico: Burton respeita sua biografada e deixa que ela conduza a história, mesmo que isso signifique suavizar seu estilo até o limite.
Mas, apesar das aparências, o diretor mais amado e odiado de Hollywood ainda está lá, ao lado de velhos conhecidos: Danny Elfman faz a trilha sonora, Rick Heinrichs cuida do design de produção e a dupla Scott Alexander e Larry Karaszewski (os mesmos de “Ed Wood”, outra biografia de Burton), assina o roteiro.
Discreto e expressivo como Keane, “Grandes Olhos” se destaca como um retrato de época, um conto quase surreal de manipulação e uma lembrança necessária, a todos os homens e mulheres, de tudo o que já se conquistou e ainda se há de conquistar, especialmente no universo masculino e caucasiano do cinema.
Por Juliana Varella
Atualizado em 25 Jan 2015.