A coletividade é uma força poderosa. Vistas de fora, digamos numa sala de cinema, onde a individualidade é protegida pela escuridão, imagens de violência tendem a causar repulsa, incompreensão, revolta. De dentro, entretanto, a lógica é outra.
É difícil aceitar que as mesmas pessoas que, sozinhas, negariam a violência, se deixem munir de ódio e cassetetes em nome de uma identidade coletiva – definida fragilmente em oposição ao outro. Mas a história sempre se repete: mulheres foram queimadas em praça pública, judeus foram massacrados a gás, gays são espancados todos os dias.
Nos anos 60, a briga era entre brancos e negros. No novo filme de Ava Duvernay (uma diretora mulher e negra, reparem), “Selma”, um Martin Luther King recém-premiado com o Nobel da Paz descobre que unir as identidades de “negro” e “branco” numa única identidade de “americano” exigirá mais do que honrarias e formalidades. (Imagine, então, se algum dia alcançaremos a identidade de “ser humano”).
David Oyelowo empresta sua serenidade ao personagem, proferindo discurso após discurso diante de uma comunidade de negros na pequena cidade de Selma. O objetivo, desta vez, é fazer com que seu direito ao voto (recém-decretado pelo presidente Lyndon Johnson) seja respeitado. Afinal, não basta colocar a lei no papel se cada funcionário público estiver disposto a desobedecê-la.
O filme parte do Nobel até a marcha, que uniu negros e brancos – na maioria ligados à Igreja católica – entre Selma e Montgomery pela igualdade de direitos. Até que a marcha pudesse ser realizada, por mais pacífico que fosse o movimento, houve mortes, negociações e muita violência.
Como “12 Anos de Escravidão”, vencedor do Oscar em 2014, “Selma” toca em feridas mal-resolvidas da história americana (não que não nos identifiquemos também) e pode ser igualmente celebrado ou rejeitado pela Academia. Não que seja uma obra tão diferente de outras do gênero, mas o longa de Duvernay encontra as imagens certas e os silêncios certos para tocar o espectador com indignação, tanto pelo passado quanto pelo presente ainda desigual.
O filme ainda se descola do óbvio ao mostrar um líder humano, muitas vezes inseguro e cansado, cujos discursos permanecem fortes até hoje. Sem medo, “Selma” destrói o heroísmo e busca a verdadeira motivação em cada personagem. O presidente apoia a causa por interesses políticos. Os brancos, em sua maioria, pela obrigação imposta pela religião. Os negros, pela adrenalina de fazer parte de um grupo. Luther King, até ele, só continua o trabalho porque seus seguidores exigem. Mas alguém precisa lutar, certo?
Por Juliana Varella
Atualizado em 30 Jan 2015.