Há uma certa convenção não-dita entre os fãs de cinema. De um lado, o “time mainstream” lota as principais salas multiplex para ver os últimos lançamentos de Hollywood; do outro, o “time cult” enfrenta a garoa fina nas sessões da madrugada em cinemas de rua para conferir a cópia restaurada de algum filme antigo e pouco conhecido. De um lado o Oscar; do outro, Cannes e Berlim.
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O problema dessa rixa vai além do fato de que há bons filmes nos dois polos: é que ela parte de um conceito falso. “Cult”, afinal, não é o oposto de mainstream nem de cinema americano. É algo muito mais amplo, um “status” que o filme conquista graças ao conteúdo subversivo, à forma original ou, simplesmente, porque oferece alguma coisa aos fãs que nenhum outro filme foi capaz de oferecer – uma reflexão, um modelo de comportamento, frases inesquecíveis, nostalgia.
Na origem do termo está uma das características básicas do filme cult: ele deve ser cultuado pelos fãs. Pense nos eventos especializados em animes, games e cultura pop, onde jovens e marmanjos competem pelo melhor cosplay e trocam fanfics baseadas nos personagens. Pense em todo o merchandising que a franquia Star Wars já vendeu e continua vendendo como água até hoje – 37 anos depois do primeiro filme – tão grande que convenceu a Disney a comprar a marca e dar sequência à franquia.
Hollywood é Cult?
"Star Wars" é o maior exemplo de que filmes mainstream podem ser cultuados: basta que os fãs transformem aquela obra num estilo de vida, expandindo seu sentido inicial para dimensões jamais imaginadas pelo criador.
Quando não são os mundos fantásticos, é a nostalgia que agarra os fãs pelo colarinho e contamina até as próximas gerações. “De Volta Para o Futuro”, por exemplo, é um filme de aventura hollywoodiano que ofereceu um passeio de volta aos anos 50 e 80 e ainda brincou com alguns sonhos (não tão distantes) de futuro. Até hoje, publicitários se aproveitam do valor sentimental desse filme para renovar o culto e vender produtos ligados à franquia.
Do lado oposto da roda, está o cult que mirou o grande público, mas que nasceu com bilheteria modesta, como “Blade Runner”. O filme de Ridley Scott foi um fracasso de crítica nos anos 80, mas passou a ser estudado e reinterpretado como uma metáfora poderosa da sociedade e hoje é citado em 10 entre 10 listas de clássicos da ficção científica.
Ilusão de exclusividade
A ficção científica, aliás, é o gênero que concentra o maior índice de filmes cultuados. Fãs mais experientes podem se vangloriar de entender conceitos mais complexos e rir de piadas “internas” que os outros espectadores não perceberão – a série de TV “The Big Bang Theory” explora esse lado do fanatismo muito bem.
Não é à toa que J. R. R. Tolkien descreveu a língua dos elfos e desenhou mapas acoplados aos seus livros - no seu caso, os livros são cult, mas os filmes não, pois limitam o entendimento ao óbvio. Os fãs querem saber aquilo que ninguém sabe e, quanto mais conteúdo houver para desvendar, maiores serão suas chances.
Merece nota, nesse campo, o culto ao diferente - no caso dos fãs ocidentais, venerar um filme japonês em particular significa conhecer algo que a maioria das pessoas não conhece ou não compreende - "Oldboy", "Akira", "Meu Vizinho Totoro" são exemplos bem populares.
O cinema europeu, mesmo não tão distante, também oferece formatos bastante distintos do americano e, portanto, pode soar subversivo a olhos acostumados a Hollywood. Destaque para os vanguardistas da Nouvelle Vague, como Godard e Truffaut, cults por excelência.
Quanto mais difícil, melhor
Alguns filmes que misturaram as fronteiras entre realidade e ficção, sanidade e loucura, caíram nas graças do público e se tornaram cultuados pelo impacto que causaram nos espectadores – atordoados e obrigados a repensar suas próprias convicções. “Matrix” e “Donnie Darko” (ainda mais cult por ser pouco conhecido) são exemplos fortes, mas “O Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” e “Clube da Luta” também podem entrar nessa categoria.
Fora do reino da ciência e da psicologia, os campeões de culto são, provavelmente, o cinema trash e o experimental, assim como filmes “quase perdidos”.
“Nosferatu”, por exemplo, é um ícone mudo do expressionismo alemão que quase foi destruído por falta de direitos autorais sobre o Drácula de Bram Stoker. Segundo se conta, apenas uma cópia sobreviveu e foi cultuada pelos fãs, cuidada e reproduzida ao longo dos anos.
Ed Wood, avô do trash, amargou uma vida inteira de sonhos às margens de Hollywood, até que, após morrer, teve seus filmes recuperados por fãs e estudiosos e finalmente ganhou o posto de “pior diretor do mundo”. Só então tornou-se cult. Afinal, fã que é fã conhece o melhor e o pior de Hollywood.
Já entre os experimentais, é notável a fama conquistada no boca-a-boca por um filme como “Koyanisqatsi” – que trabalha exclusivamente com imagens de arquivo e trilha de Phillip Glass para denunciar o ritmo frenético e prejudicial da vida moderna. "O Cão Andaluz", experiência surrealista praticamente incompreensível de Luiz Buñuel eSalvador Dalí, também ganhou sua parcela de seguidores.
O que é preciso para fazer um Cult?
Produzir um filme que contradiz os cânones de Hollywood, por si só, já é uma atitude bastante cult, mas, até mesmo dentro de uma indústria que lança centenas de fast-foods cinematográficos por ano, podem surgir novas febres que durarão décadas. Diante desse paradoxo, fica a pergunta: o que é preciso?
A resposta é simples, mas é também o desafio de qualquer contador de histórias: é preciso entender seu público, entender sua sociedade, arriscar, provocar. Isso e, é claro, uma boa dose de sorte.
Por Juliana Varella
Atualizado em 24 Mar 2014.