Ficção científica é um gênero traiçoeiro. Para agradar aos fãs, é preciso oferecer uma visão única de futuro, propor dilemas insolúveis e encontrar novas minúcias na relação entre homens e máquinas, ou entre homens e alienígenas. É preciso, enfim, ir a fundo na “ficção” e na “ciência”, com propriedade de especialista e sonhador.
Por outro lado, o grande público não é feito de grandes fãs. Para alcançar altas bilheterias, é preciso manter certas tradições, cumprir certas expectativas e, basicamente, reunir um grande elenco, alguns efeitos especiais e um discurso de fácil compreensão.
“Transcendence - A Revolução”, primeiro longa de Wally Pfister (diretor de fotografia da trilogia “Batman” de Christopher Nolan), tenta agradar a todos – nerds fiéis e cinéfilos de fim de semana – e, inevitavelmente, se perde nas próprias ambições.
Johnny Depp é Will Caster, um pesquisador que estuda inteligência artificial e criou um sistema operacional chamado PINN, que tem voz de mulher e reage espontaneamente a qualquer diálogo. Quando desafiada a provar sua autoconsciência, sua resposta é sempre a mesma: “Você pode provar a sua?”.
Will é casado com Evelyn Caster (Rebecca Hall), outra cientista respeitada e muito mais ambiciosa, que quer usar a tecnologia para “salvar o mundo”, limpando rios e restaurando florestas. Além deles, conhecemos Max (Paul Bettany), melhor amigo do casal; e Joseph (Morgan Freeman), pesquisador veterano que parece saber de tudo antes de seus colegas (mas cuja sabedoria é desperdiçada na trama).
O filme começa num futuro próximo, distópico, sem internet, onde a população parece viver numa espécie de velho oeste, em meio à poeira da terra. A sequência atiça a curiosidade do espectador sobre esse mundo e seu estilo de vida, mas não a sana. Max é quem narra a história do que teria acontecido cinco anos antes.
O tempo volta até uma palestra, onde Will é atingido por um tiro num atentado organizado pelo grupo terrorista “Unplug”. O nome do bando sugere uma apologia à vida “desconectada”, mas não é o que eles praticam: na verdade, eles dependem bastante da internet e de tecnologias em geral e criticam, apenas, os avanços em inteligência artificial. Previsivelmente, num certo momento eles disparam a frase clássica: “você quer brincar de Deus?” (aqui reajustada para “você quer criar um Deus?”).
O que acontece em seguida é uma mistura do óbvio com alguns detalhes novos: à beira da morte, Will tem sua consciência implantada no sistema de PINN – não por sua vontade, mas pela de Evelyn. Realizar os desejos da esposa torna-se a razão de vida do cientista, mesmo depois de fisicamente morto.
As ações de Will (ou PINN?) nos anos seguintes oscilam entre boas intenções e maus resultados. Na medicina, ele e Evelyn fazem grandes avanços e até ajudam pessoas deficientes da região, praticando verdadeiros milagres. Neste ponto, o filme deixa de parecer verossímil e expõe um lado fantástico que não se encaixa tão bem no tema, começando a perder a atenção daquela primeira categoria de espectadores.
A sugestão de um uso positivo para a I.A. é razoavelmente original e levanta questões interessantes, como as vantagens de uma inteligência coletiva no avanço da medicina e da biologia. Em pouco tempo, porém, o filme volta a abraçar clichês: Will não apenas cura seus pacientes, como também aproveita para controlar suas mentes, transformando-os em algo como zumbis saudáveis.
Ao mesmo tempo em que as intenções daquele “computador” começam a soar ameaçadoras, também notamos a onipresença de Will, que observa Evelyn e todo o seu laboratório 24 horas por dia. Isso lembra outro computador famoso, numa piscadela para os fãs de sci-fi – mas a referência dura pouco.
Logo, somos confrontados com uma série de viradas no roteiro que mais cansam do que prendem nossa atenção. Questiona-se se Will realmente seria “ele mesmo”, ou se sua “sede de poder” teria objetivos sinistros ou não. São apresentados argumentos de igual peso para os dois lados, mas isso, ao invés de estimular a reflexão, soa forçado e contraditório.
O problema de “Transcendence” não é conteúdo. Suas ideias – a cumplicidade entre o casal principal, o lado positivo da tecnologia, o ativismo político e o futuro desconectado – são muito relevantes para o público contemporâneo. O que falta é foco, para que todas essas pontas se amarrem e levem a uma conclusão satisfatória. Saímos, então, com a sensação de que “faltou uma peça”, e a esperança de que alguma dessas ideias sejam reaproveitadas, um dia, num conjunto melhor.
Assista se você
- Gosta de ficção científica
- Se interessa por inteligência artificial
- Quer ver um filme com boa fotografia
Não assista se você
- Não quer ver um filme com atuações fracas (de Depp e Hall)
- Não gosta de ficção científica
- Quer ver um filme bem resolvido
Por Juliana Varella
Atualizado em 18 Jun 2014.