Foto: Gael Oliveira
O Belas Artes recebe ação de despejo após 68 anos de história
O sorriso no rosto de Seu Aldo e a sempre impecável simpatia mascaram o sofrimento dos últimos dias. Há sete anos trabalhando no Belas Artes - desde a parte de projeção até a portaria -, o anúncio do fechamento do cinema deixou-o totalmente desnorteado. "O pior não é ficar sem emprego, é perder esse lugar que tem tanta história", lamenta.
Assim como Seu Aldo, a notícia abalou milhares de pessoas apaixonadas pelo cinema de rua que é um dos mais antigos e famosos de São Paulo. Manifestações e abaixo-assinados foram organizados na tentativa de impedir que o patrimônio cultural paulistano encerrasse suas atividades em 27 de janeiro de 2011 - data que o imóvel deveria ser entregue a seu proprietário Flavio Maluf (que não tem parentesco com Paulo Maluf).
Por causa da forte comoção da população, um suspiro de esperança parece ter tomado conta do tema nos últimos dias. "Já começaram a comprar essa briga, a APACI, a Associação Paulistas de Cineastas, entrou com um processo de pedido de tombamento", afirma Fernando Pereira, um dos responsáveis pela organização dos clássicos Noitões e Cineclubes. André Sturm, diretor do Belas Artes, afirma que, em resposta, "o prefeito Kassab nos procurou e disse que está sendo estudada a possibilidade de tombamento".
Ao que tudo indica, o primeiro passo já foi dado. O tema entrou como pauta extraordinária em reunião do Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e foi determinada a abertura do processo de tombamento do Cine Belas Artes, segundo a assessoria da Secretaria Municipal da Cultura.
De acordo com a nota divulgada à imprensa, "estudos técnicos para decisão quanto ao tombamento definitivo serão realizados nos próximos três meses". Enquanto seu destino não é definido, o cinema prorroga suas atividades até fevereiro e apresenta uma programação belíssima de retrospectiva dos principais títulos exibidos em suas salas nos últimos anos.
Família Belas Artes
Foto: Gael Oliveira
Uma das marcas registradas são os Noitões, que encantam os cinéfilos há sete anos
A forte reação à notícia reflete a capacidade que o Belas Artes tem de mobilizar paixões. "Foi amor à primeira vista. Já me imaginei trabalhando aqui de uma forma muito intensa", descreve o fucionário Fernando Pereira, com brilho nos olhos. Na mesa do café do Belas Artes, ele conta sua trajetória, desde o dia em que abordou descaradamente os organizadores do Noitão e pediu para se tornar colaborador até as histórias engraçadas presenciadas nesses quase seis anos. "Me enche de orgulho esse lugar, tenho certeza que não sentirei o mesmo prazer em nenhum outro emprego. Sou apegado emocionalmente, isso aqui é uma família", diz.
O forte envolvimento que os funcionários têm com o cinema é facilmente percebido: os frequentadores mais assíduos os chamam pelo nome e perguntam da família com carinho. O Belas Artes cativou ao ser o primeiro cinema de São Paulo a excluir o vidro da bilheteria e permitir um contato maior entre cinéfilos e bilheteiro.
Todos os dias a caminho do trabalho, Rogério de Moraes passava em frente e ficava intrigado com os títulos "estranhos" das películas que eram exibidas no local. "Aquilo me fascinava, morria de curiosidade para saber sobre o que eram aqueles filmes", lembra. Naquele tempo, ele já era fascinado pela sétima arte, mas conhecia apenas as produções hollywoodianas de ação. "O Belas Artes teve fundamental importância na minha formação de cinéfilo antes mesmo de pisar lá pela primeira vez", conclui.
História x Lucro
Foram muitas as pessoas que cruzaram aquela Rua da Consolação, número 2.423, e fizeram (e fazem) parte desses 68 anos de história. O cinema é um dos poucos a apresentar ainda filmes que fogem do circuito comercial, sem se preocupar com a alta rotatividade de suas salas. Não são poucos os títulos que ficaram mais de um ano em cartaz, como Medos Privados em Lugares Públicos - que teve público recorde nos últimos dias. Propostas inovadoras como os Noitões temáticos, que reuniam cinéfilos nas madrugadas da primeira sexta-feira do mês, e Cine Clubes que apresentavam os clássicos em sessões gratuitas são também méritos do local.
Foto: Gael Oliveira
No lugar do Belas Artes, uma loja deve ser construída
Antes de integrar a família Belas Artes, Seu Aldo trabalhou em outros empreendimentos cinematográficos. "Eu já vi muitos cinemas fecharem as portas e irem para shoppings", conta. Um deles foi o Marabá, clássico cinema da região central paulistana construído na década de 40 - período de grande efervescência cultural da cidade - e fechado em 2007. O local foi reformado pela distribuidora Playarte e hoje abriga cinco grandes salas que exibem filmes do mainstream.
Já o espaço da Consolação dedicado à sétima arte deve ser demolido para ceder lugar a uma loja. Segundo André Sturm, o proprietário do imóvel justificou dizendo que cinema era uma coisa decadente e o novo empreendimento lhe pagaria o triplo do valor do aluguel atual. "É um genocídio cultural, vão transformar uma história de amor da cidade em negócio", lamenta Fernando Pereira.
Com os cotovelos na mesa do café, Fernando levanta as mãos em direção à testa em um silencioso gesto de indignação. Uma luz se apaga, e o minuto calado indica que a entrevista se estendeu mais do que o esperado, já não há mais sessões e os funcionários encerram suas atividades do dia. Sem cinéfilos, bilheteria e café vazios, o cinema literalmente fecha as portas naquele fim de noite. Interrompendo o silêncio, Fernando continua, "isso tudo me faz lembrar da música Sampa, do Caetano Veloso, e um trecho que fala da força que a grana ergue e destrói coisas belas"...Artes.
Por Marjorie Ribeiro
Atualizado em 10 Abr 2012.