Será que tudo o que é clássico precisa ser intocável? Os puristas que me perdoem, mas “Kong: A Ilha da Caveira” prova muito bem que não. Sem deixar de lado as referências devidas, a megaprodução do ainda desconhecido Jordan Vogt-Roberts (“Os Reis do Verão”) se arrisca a transformar a história e fazer de Kong não um monstro frágil e incompreendido, mas um rei de fato.
Ironicamente, o título “King” desaparece aqui, para dar mais ênfase ao reino – a tão misteriosa Ilha da Caveira, que, pela primeira vez, deixa de ser localizada no oceano Índico para se estabelecer nas águas turbulentas do Pacífico. A novidade não é mero capricho: ambientado nos anos 70, imediatamente ao fim da Guerra do Vietnã, o filme costura o contexto da Guerra Fria com a Segunda Guerra Mundial promovendo um encontro entre EUA e Japão no território neutro de Kong, bem como um encontro entre passado e presente (ou passado e passado, para os espectadores) que coloca todos esses conflitos em perspectiva.
Tudo, na verdade, começa com a guerra: Bill Randa (John Goodman), um cientista interessado em provar a existência de criaturas que vivem em “bolhas” sob a superfície, se aproveita da rivalidade com a Rússia para conseguir financiamento para uma expedição, alegando que “os EUA vão querer chegar primeiro a uma ilha inexplorada”. Juntam-se a ele um pequeno batalhão do exército americano (comandado, obviamente, por Samuel L. Jackson), uma fotógrafa (Brie Larson), uma dupla de cientistas (Corey Hawkins, de “Straight Outta Compton”, e a estrela chinesa Tian Jing) e um especialista em navegação (Tom Hiddleston).
É claro que Jackson será algo como o representante do Mal na equipe, tendo sido frustrado pela retirada dos EUA do Vietnã, enquanto o personagem de Hiddleston, James Conrad, faz as vezes de herói. O maniqueísmo, entretanto, não chega a criar raízes, já que o foco não são eles – é a ilha e seus monstros, muito mais poderosos do que um bando de formiguinhas humanas querendo invadir seu espaço.
Além disso, apesar de Conrad ter uma postura de liderança, a personagem de Larson, Mason Weaver, tem um protagonismo equivalente, jamais assumindo o papel da donzela em perigo que tornou “King Kong” tão popular nos anos 30. No lugar, Vogt-Roberts faz apenas uma referência sutil à relação entre ela e o gorila, deixando no passado a máxima de que “a bela matou a fera” para adotar algo mais próximo de “os humanos conheceram a fera”.
Essa também é outra grande (e corajosa) novidade do filme: o objetivo da expedição não é sequestrar ou matar Kong, mas sim levar provas de sua existência para que outras expedições sejam feitas e outros seres como ele sejam mapeados. O filme, em outras palavras, não sai da ilha, e esse é seu maior presente para os fãs. Finalmente podemos ver em detalhes a relação do Rei com as criaturas ao seu redor (o que inclui animais gigantes e um déja-vu sinistro de “Querida Encolhi as Crianças”), com a tribo nativa (agora mostrada como sábia e pacífica, e não mais como primitiva e violenta) e mesmo com os invasores, mas num contexto em que ele tem o controle.
Esse ponto de vista coloca Kong estrategicamente (para a Legendary, dona de títulos como “Godzilla” e “Círculo de Fogo”) como apenas uma criatura num contexto em que se assume que há muitas outras. Para os fãs, as consequências disso são óbvias – inclusive, a organização secreta Monarch, apresentada pela primeira vez em 2014 no “Godzilla” de Gareth Edwards, é citada. E, para quem se animou com a ideia, pode valer a pena esperar pela cena pós-créditos.
Tudo isso mostra como “Kong: A Ilha da Caveira” se posiciona em relação às origens – com reverência, mas também com consciência e ambição. Esse, porém, está longe de ser o maior trunfo do filme: na verdade, o que faz de “Kong” um sucesso é o fato de ele ser um filme divertido, atraente e assustadoramente bem feito.
A aventura está ali, os monstros estão ali desde o início, esbanjando monstruosidade, e há humor, ação e suspense nas doses certas. A fotografia se inspira em clássicos de guerra, como “Apocalypse Now”, e abusa de takes com pôr do sol, fogo e poeira. Kong, em si, é um escândalo: imenso como jamais se viu, coberto pelas texturas certas e com apenas o toque de humanidade necessário aos olhos. A trilha sonora e os cortes rápidos também ajudam a dar ritmo, lembrando em alguns momentos o tom de “Rua Cloverfield, 10” (que também tem John Goodman no elenco).
“Kong”, enfim, é um tiro certo nos corações dos fãs – seja para os amantes do personagem ou os devotos do cinema “de monstro”. Atualizado para um novo contexto e um novo público, o gorila mais icônico de Hollywood pode voltar a ocupar seu espaço de honra no imaginário do público, sem medo de parecer piegas, sexista ou infantil. Ele, agora, é um monstro de respeito.
Por Juliana Varella
Atualizado em 9 Mar 2017.