Não sei vocês, mas ainda me lembro da sensação de ver “Trainspotting” pela primeira vez. Foi quase traumático. Não conseguia desgrudar os olhos da tela e, ao mesmo tempo, mal conseguia olhar: era tudo muito cru, muito explícito, muito repulsivo, e até hoje a cena do bebê me arrepia. O que Danny Boyle nos mostrava, sob uma narrativa consciente e uma edição sedutora, eram cinco amigos destruindo suas vidas e seus relacionamentos em busca de mais uma picada, ou mais uma briga. E eles não tinham objetivos. Eles não tinham moral. Eles simplesmente não se importavam.
“Trainspotting” foi um choque para a época, mas é difícil imaginar um filme como esse sendo lançado hoje em dia. Ele pode ser exibido nos cinemas, como um clássico “cult”, mas uma obra original falando de drogas (ou qualquer outro tabu) com a mesma cara-de-pau? Jamais seria distribuída. Não nesta década.
Se você duvida, então vá conferir a sequência “T2 Trainspotting”, que estreia nos cinemas no dia 23 de março. Muito vagamente baseada no livro seguinte de Irvine Welsh, “Porno”, “T2” conta o que aconteceu aos quatro sobreviventes 20 anos depois: um teve um filho, mas se afastou pelas drogas; outro herdou um pub e continuou sonhando com um “grande negócio”; outro ficou preso todo esse tempo e o último, ironicamente, se tornou a própria definição do homem comum que “escolheu a vida” e que o quarteto tanto abominava – o homem correto com um emprego estável e uma saúde impecável, ou quase.
O motivo pelo qual continuamos comprando ingressos para sequências como esta é que é sempre bom rever personagens tão fortes quanto Renton, Sick Boy, Spud e Begbie (além de participações pontuais de Diane e Gail, a namorada de Spud e a menor que se envolve com Renton, agora advogada). Queremos saber como eles envelheceram, o que aprenderam e, acima de tudo, queremos saber se vão se reconciliar após a traição que encerrou o primeiro longa.
O filme nos dá todas essas respostas, mas evita fazer novas perguntas. Quando “rejeitar a vida” já não faz mais sentido, o que resta para esses quatro rebeldes? Quando “recomeçar” se torna um conceito possível, como encontrar seu lugar num mundo que você simplesmente se recusou a conhecer? Isso tudo vem à mente do espectador, especialmente àquele que tem o primeiro filme fresco na memória, mas não vem à tela. Não com a acidez com que deveria.
“T2” acerta ao trazer de volta todo o elenco original e, assim, promover novos encontros épicos entre eles, mas erra ao olhar para eles com uma lente tão unidimensional. Begbie (Robert Carlyle) agora é o vilão, Renton (Ewan McGregor) é o mocinho, Spud (Ewen Bremner) foi reduzido a inocente cômico e Sick Boy (Jonny Lee Miller), ao melhor amigo. Para quem não se lembra, eles não eram nada disso e o roteiro se equilibrava muito bem entre cada um para não eleger heróis. Mas este é o século XXI e é preciso ter heróis.
Como uma sequência para fãs, é verdade que o filme tem tudo: direção de Danny Boyle, roteiro de John Hodge, cenas praticamente recriadas do original e o velho estilo punk-escocês irresistível. Mas, entre “Trainspotting” e “T2”, Boyle parece ter perdido a ousadia. Ao invés de inovar mais uma vez na forma, ele recorre a antigos recursos que deram certo no primeiro filme (como as imagens congeladas e a trilha musical perfurante), mas o faz sem critério. O resultado são frames paralisados em momentos errados, silêncios mal colocados e uma trilha que mais parece uma homenagem ao passado do que uma provocação. Aliás, talvez a intenção seja justamente essa: uma grande homenagem ao passado, um banho de nostalgia, um “passeio turístico pela sua juventude”, como diz um dos personagens na melhor cena do filme.
Um passeio pela juventude, sem a irresponsabilidade inerente a ela. Uma viagem aos anos 90, a bordo do asséptico trem dos anos 2010. Cada um, o retrato do seu tempo.
Por Juliana Varella
Atualizado em 22 Mar 2017.