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Lembra-se de que ainda era criança, quando alguém lhe falou que era cega. A escuridão sempre foi uma coisa comum. Tudo o que vê, ou acha que vê, são rastros de luz e pequenos clarões quando acordava. Não por acaso, o nome é Clarice. Está a uma semana de completar 15 anos e tem na irmã mais velha a musa e confidente para os conflitos de uma típica adolescente.
Ainda sem saber ao certo o porquê, passa boa parte do tempo, antes de sair de casa, presa aos afazeres obrigatórios da vaidade feminina. Os cabelos lisos têm que estar bem escovados e os lábios preenchidos de batom com as pontas dos dedos.
Se a ausência de um dos sentidos aflora os demais, talvez estivesse no hábito em passear sempre pela manhã até a praça da esquina com a mãe, sentar-se ao banco perto do coreto e ficar alguns minutos recebendo o sol no rosto. Uma rotina tão simples para os outros, mas tão prazerosa pra ela.
Os sonhos sempre foram constantes durante à noite. Assim que acordava, os comparava ao cheiro do bolo de cenoura da avó, ao banho de chuva dos verões, ao perfume das flores do jardim do quintal ou a sensação de liberdade que o vento trazia quando cavalgava com o pai nas férias de fim de ano.
O mundo era sempre apresentado de forma abstrata pra Clarice.
Os pais zelosos se revezam em levar e buscá-la no colégio. Desde a infância sempre tentou ser independente. Costumava soltar da mão de qualquer pessoa que tentasse tê-la muito por perto.
Enquanto para uma menina da sua idade a festa de 15 anos é um presente sonhado, o de Clarice já era mais que aguardado: o direito em poder sair sozinha de casa.
Após muitas conversas, os pais concordaram em comprar um cão e treiná-lo para guiá-la na rua.
Durante quase um ano, a mãe acompanhou escondida a uma esquina atrás ou à frente, ou no mesmo vagão do metrô a tentativa da filha em sentir-se exercendo o direito de ser livre. Mal a mãe pudesse desconfiar de que ela sentia de longe o cheiro e a presença dela.
Numa tarde em que fora dispensada mais cedo da escola, Clarice aproveitou a oportunidade e, sem avisar ninguém, foi com o cão até a praia. Um rapaz que passara próximo ofereceu-se para guiá-la e, sem que pudesse imaginar o que seria um pôr-do-sol, sentou-se na areia e passou a ouvir atenta a descrição de um crepúsculo por ele.
As horas passaram e ela perdeu-se ao encanto do rapaz que ria do seu humor ácido e ao fato de sentir a brisa do mar e imaginar como são infinitos os pensamentos e os sonhos pra quem pode olhar a água se perder no horizonte.
Conversaram durante horas e então se deu conta de que sua família poderia estar preocupada. Ele a levou em casa.
Clarice entrou com os pés sujos de areia e a calça do colégio molhada. E, antes que todos pudessem falar-lhe algo, ela disse:
- Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.
Assim disse Clarice. Mas qual delas?
Leia as colunas anteriores de Guilherme Gonzalez:
Amor com escalas
Um curto diálogo
Varela
Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.
O que faz: ator e produtor.
Pecado gastronômico: risoto de lula e sorvete de açaí com tapioca.
Melhor lugar do Brasil: Praia de Pipa (RN).
O que está ouvindo: Norah Jones e Michal Bublé.
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Atualizado em 6 Set 2011.