Guia da Semana

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Sentava à mesa e, como de costume, pedia um Dry Martin. Ia ali todas as noites de sábado. Ficava na mesa próximo à porta do banheiro, no escuro. Chegava às 23h, cumprimentava os garçons com um sorriso singelo, puxava a cadeira e acendia um cigarro.

Como se tivesse saído de uma noitada do Madame Satã, nos agora longínquos anos 80, ela sempre pareceu querer fugir dos modismos e dos comportamentos clichês das outras mulheres que a cercavam.

Ouvia Billie Holiday na adolescência, enquanto as amigas queriam pintar os cabelos de loiro, sonhavam em ser a Wanderléia e esperavam, ansiosas, o último lançamento do disco do Roberto.

Sempre reclusa, destilava no dia a dia sua porção amarga, irônica, mordaz, ácida, engraçada e escorpiana com ascendente em aquário e lua em virgem. A noite a servia como inspiração para seguir com sua vida, urgente.

Um pouco mais de 50. Uma filha casada de 20 e poucos anos. Ela, divorciada. Jornalista. Aposentada. Escrevia contos para si mesma. Hora ou outra apresentava um para os amigos, que eram poucos.

Estatura mediana, cabelos pintados de negros, curtos. No rosto, as marcas do tempo acentuadas com as noites de álcool e discoteca ao longo de uma adolescência pulsante, que ela demorou a admitir que já havia passado faz tempo.

Mantinha a solidão como companheira, aliada. Atingia a beleza do sofrível como pintura. Vivia raramente no claro, preferia pouca luz e, por isso, os meses do inverno eram seus preferidos. Costumava trocar o dia pela noite.

Uma figura quase vampiresca, sombria. Uma senhora que ainda trazia, mesmo que fosse só no olhar, a doçura de alguém escondido atrás daquela casca de mulher durona que à noite chorava sozinha no quarto, no silêncio.

A filha mal a procurava, o marido a trocou pela secretária da empresa, alguns bons anos mais nova que ela. Isso não era causa nem efeito da vida que levava. Havia ali uma inquietude, algo que desde muito nova a perseguia. A vida seguia para um lado, e ela, para outro. Uma contramão quase kamikaze. Quase. Essa era a sua verdade. Daquele jeito. Sem tirar nem por. Ou melhor, "pondo", como ela mesma adorava dizer, fazendo um trocadilho infame de cunho sexual.

Como um maestro que demora a compor a música que a considera sua obra-prima, ou mesmo como um escritor que escreve um livro aos poucos, ela foi encaminhando sua vida como uma eterna despedida.

Ali naquela mesa, sentada, sozinha, todas as noites de sábado, ela fumava cada cigarro como um doce veneno. Saboreava cada tragada como um adeus preso desde que descobriu que sua passagem seria breve. Aliás, a angústia que sempre a acompanhara estava se confirmando. Sempre teve certeza de que sua estada era passageira.

Numa noite chuvosa de julho o bar abriu. Durante toda a noite, a mesa que costumava ficar permaneceu vazia. E assim foi. Ela também. Ao contrário do que possa parecer. Feliz.

Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.

O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.

Pecado gastronômico: Comida de mãe.

Melhor lugar do Brasil: Ilha do Marajó.

O que está ouvindo: Marina de la Riva.

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.