Foto: Getty Images |
Eu vi a Clara de dentro do carro. Mas quando decidi confirmar, já tinha acelerado uns metrinhos e só consegui avistar as costas tampadas pelo vestido florido. O cabelo dela está curtinho e eu nem a reconheço mais, sem os cachos passando do ombro. Aquele cheirinho do creme que ela usava pra não enjubar. Eu conheço a Clara há uns dez anos. Morei no apartamento dela a única vez que saí da casa da minha mãe. Ela tinha umas manias. Gosta de comer pão de queijo no jantar. Mas cerveja gelada nunca faltou! Sempre me tratou bem.
E se acabasse, o supermercado ali do lado era 24 horas. A gente saía e comprava aquelas garrafas de edições especiais. Saaaabe? Eu parei o carro em qualquer estacionamento que não fechasse antes da meia-noite. Droga de bairro cheio! Nem uma vaga na rua pra gente economizar R$ 15,00. Cheguei no bar e era ela mesmo. A Clara bebeu ontem. Que nem eu. E a gente estava lá falando de casamento, não sei o porquê.
De repente ela ficou quieta. (...) "Que foi, Clara?" Ela emendou um "Então...". Naquele silêncio que me fez arregalar os olhos. Disse que não sabia como me contar. Eu tenho uma fama fincada de pessoa dramática. Eventos de pouca importância viram tsunamis na minha cabeça. Chego até a forçar um chorinho de vez em quando. Então me recuso a fazer a estátua quando o assunto é (foi?) importante. Quando me contaram algo que eu não gostaria de saber. Que eu não gostaria que tivesse acontecido. Ele se casou e eu fiquei pensando que nem perto disso eu tava. Eu fiquei imaginando se o tapete que agora eles pisam é o mesmo que eu escolhi. Se ele pintou a parede daquela cor horrível que eu não deixei. Ou pior, se a viagem foi pra algum lugar que eu queria e ele vetou.
(Silêncio) Descobri que foi. Pedi outra. Bem gelada. Porque eu parecia uma nuvem dissipando no meio do bar. O olhar embaçando. Precisava acordar. As pessoas seguem suas vidas. Eu sigo. Mas cultivo sempre a impressão de que elas continuam pedras exatamente onde deixei. Talvez seja para amenizar minhas dores. Pra eu não ter dúvida de decisão nenhuma. Que seja assim então. Resolvi deixar pra lá. Tem meses em que eu até me esqueço de que ele existiu. Só me lembro quando preencho ficha de cadastro. Tudo depois da primeira morte dele. Meu copo caindo no chão. Todas as ligações rejeitadas, e-mails não respondidos fizeram sentido. Morte. Talvez até a minha. Pra ele. Sem direito a vagar fantasma nos pensamentos noturnos, que ele teria, quando se vira para o outro lado da cama, depois de uma briga. Nem isso.
A Clara mudou de assunto e contou que não ia mais ficar desempregada. Parece que gostavam dela na empresa. Eu dei trela, porque o trabalho da minha amiga é assunto mais importante do que a viagem pra Londres que um dia me foi negada. 'Deixa ele' lá. Nas fotografias digitais que se apagaram quando meu computador pifou. Em algum montinho de areia que guardei de alguma viagem pra algum litoral e que joguei fora na última faxina. Na camisola que ganhei de aniversário de namoro e que levo para dormir na casa de outro. A Clara disse que era hora de ir embora, porque acordava cedo para ir pra cidade da mãe dela. Resolvi fechar a conta também. Mas eu não iria pra casa. Se eu não tava beirando um relacionamento sério, eu precisava do meu simulado. Daquelas noites que parecem eternas e felizes. Como na hora do sim. Eu precisava provar aquilo mais uma vez. Eu precisava viver fotografias mais uma vez. Parei num balcão à espera do próximo desconhecido.
Quem é a colunista: Priscila Nicolielo.
O que faz: dramaturga, roteirista de TV e blogueira.
Pecado Gastronômico: comida italiana.
Melhor Lugar do Mundo: noite em São Paulo.
O que está ouvindo no iPod, carro ou mp3: primeiro CD da Imogen Heap.
Fale com ela: [email protected] ou acesse seu blog e a siga no twitter.
Atualizado em 26 Set 2011.