Por Pamela Cristina Leme
Em 1983, a biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes levou um tiro nas costas e ficou paraplégica. Ela tinha 38 anos e três filhas. O autor do disparo? Seu marido, o professor universitário Marco Antonio Heredia Viveros, que, depois do episódio, ainda tentou matar a esposa por eletrocução. Ele ficou impune por 19 anos, até ser preso em outubro de 2002. Cumpriu dois anos de prisão. Atualmente, está livre. "Não acho que a justiça tenha sido feita", Maria da Penha diz por telefone, direto de sua terra natal. "Mas o que aconteceu comigo teve um lado positivo: a exposição da deficiência do poder judiciário brasileiro quanto à violência doméstica contra a mulher."Vice-presidente da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), da qual é integrante desde 2001, ela tornou-se símbolo nacional na luta contra esse tipo de agressão. No dia 07 de agosto deste ano, Maria da Penha esteve ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que sancionou no Palácio do Planalto a lei que leva seu nome e atende pelo número 11.340. "Naquele momento, eu disse a mim mesma: ´A luta valeu a pena!´"
A investigação sobre a agressão cometida por seu marido começou no mesmo ano do crime, quando Maria da Penha procurou a ajuda de advogados e organizações não-governamentais. "Ir à delegacia, naquela época, não resolvia muita coisa", explica. A denúncia foi apresentada ao Ministério Público Estadual em setembro de 84, mas só oito anos depois Heredia foi condenado a dez anos de prisão. No entanto, com ajuda de recursos jurídicos, o então professor universitário conseguiu protelar o cumprimento da pena.
O caso de Maria da Penha chegou, então, às mãos do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), que, com apoio do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem), decidiu levar o caso à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Esta, por sua vez, responsabilizou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica - a organização acatara, pela primeira vez, uma denúncia de crime de violência doméstica e iniciou uma série de investigações sobre o andamento do caso na esfera judicial brasileira. Em abril de 2001, a OEA condenou o Brasil a definir uma legislação adequada a esse tipo de violência. "Só neste momento finalmente senti que alguma coisa estava sendo feita", confessa Maria da Penha.
A lei que homenageia a militante cearense é uma vitória comemorada por grupos feministas em todo país, e um alívio na vida das cerca de dois milhões de mulheres que são agredidas física ou psicologicamente no Brasil a cada ano. "A violência contra a mulher costumava ser considerada um problema privado. Tivemos uma evolução gradual da sociedade, que adotou uma consciência de revolta quanto a esses casos", defende a jornalista Marisa Sanematsu (SP), integrante do Instituto Patrícia Galvão (ONG sediada na capital paulista que desenvolve projetos contra a violência à mulher).
Marisa aponta uma pesquisa realizada pelo Ibope no início deste ano que mostra o aumento do número de brasileiros preocupados com esse tipo de violência (leia mais no fim da matéria). 33% dos entrevistados, homens e mulheres, acreditam que a violência doméstica é a maior preocupação das brasileiras nos dias de hoje; 64% acham que o homem deve ser preso.
Contra quem considera a Lei Maria da Penha sexista, a jornalista argumenta: "Esse tipo de apontamento não é justo, afinal, os tipos de agressão são diferentes. Primeiro, os homens são fisicamente mais fortes. Depois, por questões culturais, a mulher agredida tem mais dificuldade para lidar com a questão familiar, uma vez que o homem, em geral, tem mais independência financeira. Além disso, eles têm mais facilidade para abandonar os filhos se precisarem sair do lar. Por fim, estima-se que, dos casos de violência doméstica, 99% sejam referentes a agressões contra a mulher", garante.
O que muda com a Lei Maria da Penha: |
Dormindo com o inimigo
Mas o que a tal lei traz de novidade? Para começar, penas como serviços comunitários e pagamento de cestas básicas ou multas não são mais permitidas. Se antes eles poderiam ficar até um ano presos, agora podem ser condenados a até três anos de cadeia. A prisão em flagrante passou a ser levada em conta e, se a mulher provar que corre risco de vida, pode conseguir a saída do agressor de sua casa e a proibição de sua aproximação até mesmo junto aos filhos.
Além da violência física e sexual, a violência psicológica (quando o agressor tenta controlar as ações da mulher, seus comportamentos, crenças e decisões por meio de ameaças, humilhação, isolamento e outros meios), a violência patrimonial (a vítima perde bens, valores ou recursos econômicos por coação, chantagem ou manipulação), bem como o assédio moral (sofrer repetitivamente atos de humilhação, desqualificação ou ridicularização) são ações consideradas na Lei Maria da Penha.
Outra conquista importante é a criação de juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, com abrangência cível e criminal. Assim, os crimes podem ser julgados por equipes mais capacitadas. Desde que a sanção da lei, a capital paulista passou a contar com mais de 20 juizados. No Rio de Janeiro, o Tribunal de Justiça transformou os antigos Juizados Criminais em Varas Especializadas em Violência Doméstica.
Segundo dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) do Governo Federal, a lei já começa a dar outros frutos. Desde setembro, registrou-se aumento no número de mulheres que denunciaram seus agressores. No Rio Grande do Sul, por exemplo, esses números aumentaram em quase 50% nas Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher. Em Palmas (TO), já há registros de prisão e enquadramentos na nova lei. Com um dos maiores índices de violência contra a mulher do país, Pernambuco chegou a registrar 13 flagrantes em apenas cinco dias. O estado lidera o ranking de mulheres assassinadas - só neste ano foram quase 300.
"Sofri bastante durante todos esses anos, como muitas outras mulheres também sofreram, mas hoje tenho o prazer em ver que elas estão denunciando muito mais", afirma a agredida que sobreviveu para contar.
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Fotos ilustrativas: Stock.XCHNG
Atualizado em 6 Set 2011.