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"Pensar é um ato. Sentir é um fato" - Clarice Lispector
Chovia grosso. Os pingos caíam forte como se fossem, a qualquer momento, furar o telhado. Era um dia cinza de feriado, daqueles em que o barulho da chuva se misturava com o canto de um pássaro do lado de fora.
Ana G. encostou a cabeça na cadeira de embalo próximo a janela e viu sua imagem refletida no vidro da basculante. Turva, confusa, inquieta. Como a chuva.
Procurou na estante da sala algum livro para passar o tempo, mas acabou optando por folhear um velho álbum de fotografias. As fotos, já amareladas e gastas, ainda preservavam sons, um pouco de felicidade e poesia. Anos de muito amor e trinta e cinco anos de história guardados em imagens presas nos retratos.
Suas mãos estavam com pouca força. As lágrimas já haviam cessado e sentia que era apenas um sopro de vida naquele corpo. Nos ombros, a carência latente de uma mulher solitária.
Fazia exatos três anos da partida do marido. E ela ainda vestia preto. Como sua mãe fez quando o pai se foi. O luto acima de tudo era interno, a alma se cobria de cores escuras.
Seguia a rotina que a vida ainda permitia. Durante a semana, acordava cedo, fazia o café, varria as folhas caídas no quintal, preparava o almoço, lavava a pouca louça, lia algum livro, via alguma coisa na televisão, fazia um lanche da tarde, conversava com alguma vizinha, preparava o jantar e esperava o sono vir com a esperança de não mais acordar. Os fins de semana eram para esperar a visita do único filho e dos dois netos, que passavam rapidamente, sempre alegando outro compromisso para não ficar muito tempo com ela.
Já era noite. Ana G. havia lavado o rosto e deixado as sandálias embaixo da cama. No momento em que apagaria a luz do abajur, o telefone celular disparou uma mensagem. Não conseguiu identificar o remetente. Assim que abriu viu a frase: "A morte um dia perderá o seu domínio". Imaginou ter sido engano e dormiu.
Acordou no meio da noite com uma mão acariciando seu rosto. Forçou um pouco a vista e viu o marido, com a aparência muito jovem, os cabelos ainda fartos, negros, os braços rígidos, o peito nu forte, o sorriso de dentes brancos e a barriga lisa com entradas na cintura. A pintura de homem lindo, que a conheceu há trinta e cinco anos.
Ele deitou ao seu lado. Ela tentou balbuciar alguma palavra, mas ele calou sua boca com os dedos. Levantou-a carinhosamente. A camisola deixou escapar um dos seios. Ela ensaiou levantar a alça, mas ele pôs uma de suas mãos nele. Dançaram no silêncio da noite. A cabeça encostada no peito e os pés acompanhando o ritmo do vazio.
Ela era baixa, franzina. Mal chegara a alcançar os ombros dele. Ela, com o corpo de uma mulher madura, gasta e sofrida. Ele, jovem, belo e com a força gritante da juventude. Ali, naquele momento, o desejo não seguia padrões. O amor vencera qualquer diferença. De tempo, de espaço, de vida ou de morte. Beijaram-se e se amaram por toda noite. Como se essa fosse eterna.
A luz do sol nascendo invadiu a janela do quarto e a despertou. Ficou alguns minutos parada e sentada na beira da cama. Lavou o rosto, escovou os dentes e se olhou no espelho. Nunca se sentiu tão bonita, desejada. Abriu o guarda-roupa e tirou a roupa mais colorida que havia guardado lá. Esperou o entardecer para caminhar na avenida. O vento batia em seu cabelo. No rosto, um sorriso discreto.
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Luccas
A dama da linha verde
15 anos-luz
Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.
O que faz: ator.
Pecado gastronômico: Kassler grelhado com batata Sauté e Chucrute.
Melhor lugar do Brasil: Búzios (RJ).
O que está ouvindo: Made for you - OneRepublic.
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Atualizado em 6 Set 2011.