Guia da Semana

Hoje decidi matar você!

Foto: Photocase.de


A noite tinha sido longa, após o jantar com a mãe recolheu-se no seu quarto e como de costume antes de deitar asseou-se, tirou a toca plástica verde e sentada em frente à penteadeira jogou os cabelos negros e cumpridos pra frente e escovou-os quinze vezes. Já vestindo camisola passou um pouco de colônia infantil no pescoço e nos punhos, foi deitar e ficou olhando o rádio-relógio no criado-mundo esperando o momento em que os números marcassem zero hora.

Pronto! Agora sim, feliz aniversário! Espero que goste do presente.

O sol mal despontava pela janela e ela observava com paciência os raios tomarem conta do quarto aos poucos. Levantou-se delicadamente e foi até a primeira porta do guarda-roupa e tirou uma caixa de sapatos fechada por uma fita de cetim amarela.

Tenho que apagar todos os vestígios, quem disse que não existe crime perfeito?

Seis anos marcava o tempo que já durava essa relação. Conheceram-se ainda nos tempos do colégio, ele sempre foi bonito, popular, desejado. Ela: poucas amigas, aluna razoável, óculos de aros grandes, chegou a usar colete cervical para consertar a coluna. Era dispensada por essa razão das aulas de Educação Física, sozinha na arquibancada ficava observando ele jogar futebol, enquanto escrevia na agenda com canetas coloridas seus nomes em meio a recortes de revistas, desenhos de corações, clipes e fotos do grupo New Kids on the Block. Achava ele parecido com o vocalista e nutria por ele a paixão platônica pelo ídolo.

Vou perder minha hora no salão!

Sete anos marcava o tempo em que eles não se viam. Ela: formada em Odontologia, corpo curvilíneo, os traços exóticos do seu rosto acentuaram-se com o passar dos anos. Tinha pele alva e nariz fino. Tornara-se uma mulher muito bonita. Ele: Largou a faculdade de Ciências Contábeis ainda no primeiro ano, foi trabalhar na loja de materiais de construção do pai e seu corpo foi ganhando peso e a sua aparência nem de longe lembrava os tempos do Colégio São Luís.


Foto: Photocase.de


Era aficionada por cinema adorava filmes franceses, mas tinha uma queda pelos românticos americanos. Guardava ainda a fita de Ghost e achava lindo o choro em que Demi Moore deixava cair apenas uma gota de lágrima enquanto olhava o fantasma do marido. Chegou a ensaiar várias vezes na frente do espelho, mas as lágrimas sempre caiam em abundância no final de cada noite em que sofria no silêncio do quarto.

Depois daquele reencontro e do começo do namoro tudo mudara na sua rotina. Afastou-se das amigas, deixou de ir ao cinema (ele dizia que era um bando de bobagem), passou a mudar seu estilo de se vestir, abandonou a vontade de mudar a cor dos cabelos e ficava em casa nos fins de semana ou no máximo ia passar alguns dias na casa de praia dos sogros.

Durante os últimos dois anos passou a planejar com esmero cada detalhe do seu casamento, sempre o consultando e aguardando a sua aprovação para cada decisão.

Um telefonema no meio da madrugada, três dias antes do seu aniversário, três dias antes de completar 30 anos fez ruir sonhos e a fez recordar das brigas intermináveis, do ciúme possessivo dele, das agressões verbais e das noites de sábado em que ficava esperando em vão por ele.

Ficou olhando de longe, por de trás do carro estacionado na esquina. A outra: cabelos tingidos, raiz preta, blusa decotada, saia curta, sandália de dedo.

Sutian vermelho com a alça aparecendo, ridícula!


Foto: Photocase.de


Voltou do salão com os cabelos curtos, fez questão dela mesma ir ao banheiro e após ler atentamente as instruções da caixa, colocou luvas e pintou de vermelho intenso ao som de The Blower´s Daughter, trilha de Closer outro filme dos seus preferidos. Foi até o banheiro, olhou-se feliz no espelho e vestiu a roupa preta deixada em cima da cama. Já passara das 17 horas, quando pegou a caixa com todas as recordações daqueles seis anos e foi até o quintal. Jogou álcool e incinerou. Apagou de vez tudo que lembrasse aquele homem.

Ligou o computador, criou uma página no orkut e escreveu no MSN: "É preciso dar cor e forma às coisas, porque desnudas elas apavoram" e como status, Volto Logo.

Passeava ao final da tarde na Avenida Paulista em meio à multidão com os cabelos vermelhos intenso. Entrou em várias lojas e livrarias e fez questão de parar em frente a um grupo de executivos que saiam do emprego e tirou com delicadeza os óculos escuros.

I can´t take my eyes off of you. ´Til I find somebody new!

Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez, administrador e ator do Pará para a Terra da Garoa.

O que faz: Um apaixonado pelas artes que largou a vida da administração para viver do teatro

Pecado gastronômico: culinária paraense.

Melhor lugar do Brasil: São Paulo no feriado.

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.