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Três momentos. Primeira cena. O taxista se mostra contente: inauguraram um novo restaurante perto do ponto. O estabelecimento já passou no teste da dobradinha de terça-feira e, ao que tudo indicava, ia passar com folga pela feijoada. Só faltava um teste: o da cerveja.
- Quero ver é na sexta-feira, se a gelada vai tá na temperatura! - apostou para, depois de uma pausa, prosseguir - quero ver é se eu passo, depois, em outro teste: o do bafômetro...
O figura garante que, durante o dia, a lei seca não teve impactos positivos de aumento de clientela. De noite, talvez os colegas tenham se saído melhor, quem sabe? Quando está de folga, o motorista sai com a esposa, a irmã e o cunhado para o bar, e volta com o taxímetro ligado, só para fazer jogo de cena. Aposta que policial nenhum vai parar um profissional, mesmo que ele esteja voltando do bar.
Segunda cena, um bar. Estou tomando água. Sem gás. Sem gelo. Papo vai, papo vem, nada sobre acidentes de trânsito nem formas de burlar o bafômetro.
Chega um grupo de cinco pessoas, quatro barbados e uma moça. Ensejam pegar a mesa do lado de fora, mudam de idéia e se instalam em outra, ao lado da minha. O barbicha vira para os outros, ar grave:
- Ó, gente: hoje, pode beber, que eu dirijo!
Houve um instante de silêncio. A minha conversa também parou.
Eu não imaginava que isso aconteceria de verdade. Um verdadeiro exemplo de civismo, um ato de solidariedade manguaça: abrir mão do direito de beber para levar os outros para casa sem o risco de levar um multa, perder o carro e a carteira ou, claro, causar acidentes. Que efeito nobre da Lei Seca! Estive prestes a me levantar para cumprimentá-lo. Ou para xingar aquele ato de "bom-mocismo".
Em meu basbaque de orelhudo de conversa alheia, dispara o magrão amigo do "sóbrio da galera":
- Ah, você já encheu a lata antes de vir pra cá, vai se f...
Todos caem na gargalhada. Pedem cerveja e cinco copos. Fiquei pensando que nenhum deles estava de carro, para não correr riscos. Mas seria só se ampliasse a piada.
Terceira cena. Almoço de família, chego em sétimo. Só faltam uns 15 para a comida chegar à mesa. A tecnologia para abastecer os sedentos convivas é levar as garrafas long neck para uma mesa auxiliar, de onde todos, comedidamente, se apropriam de uma pra degustar.
Não sei por que, depois da saudação inicial, meu olhar se dirigiu diretamente para onde se concentravam as garrafinhas. Rapidamente, vi duas de rótulo azul onde se lia "Bavaria", mas "sem álcool".
- Rapaz, olha o que dá a lei seca no trânsito, o pessoal se preocupou com o teste do bafômetro dos convidados... - elogiei para quem estava do lado.
- Sem álcool, é? E é boa? - devolveu capciosamente o interlocutor.
- Não sei, nunca provei - devolvi.
O figura resolveu que era hora de tentar, saber qual era a da sem álcool, e para saber se os 25% de aumento nas vendas do segmento depois da lei seca iam ser sustentados ou não, se valeria a pena ir além do "pra provar".
- Bora dividir? - convocou.
- Não, brigado... - esquivei - Minha religião não permite.
Em seguida ele abre a garrafa, serve o próprio copo. Gelada que estava, não faz espuma. Será que a imitação é tão boa assim?
- Parece água - sentenciou.
Achei que fosse jogo de cena, para dizer que "não tinha graça" num número típico de um manguaça que quer se dizer incorruptível pelo desrespeito ao mandato etílico. Mas não me arrisquei. É melhor evitar o primeiro gole da sem álcool, já ensina o manual. Ele insistiu em comparar com água, dizendo que nem gosto tinha. Passa-se meia hora, chega quem tem que chegar. E nada de a outra sem álcool encontrar dono. Ela vai esquentando enquanto todas as outras não param na mesa.
Hora do almoço. A movimentação começa, alguém pega a garrafinha de rótulo azul.
- Olha, é sem álcool!
Depois passa a examinar minuciosamente o rótulo, para ver os 0,05% de álcool, o valor calórico etc.
- Putz, tá vencida!
O que tinha provado a outra garrafa não botou fé:
- Como assim, vencida?
- É, vencida. Desde junho de 2006!
Eu continuo sem saber se são só as cervejas sem álcool vencidas que parecem água ou se as dentro do prazo de validade também.
Quem é o colunista: Anselmo Massad
O que faz: jornalista e um dos autores do Futepoca (Futebol, Política e Cachaça), onde edita a coluna de assuntos espinhosos
Pecado Gastronômico: cachaça Velha Motinha e queijo
Melhor Lugar da Cidade: Ceagesp aos sábados e domingos de manhã
Para Falar com Anselmo: anselmo@ futepoca.com.br
Atualizado em 6 Set 2011.