De sua nova sala, no Sumaré, Evandro Martins Fontes comanda três selos editorais e três livrarias
Acomodado numa confortável poltrona bege e trajando um blazer escuro sobre camisa preta e jeans bem afeitado, Evandro Martins Fontes parece satisfeito com os caminhos por ele percorridos até os seus recém-completos 50 anos. Já com o rumo do livro no início da segunda década do século 21, nem tanto.
"Livro virou moda, publicar livro virou moda, todo cara que aparece na TV, de ator de tevê à apresentadora, quer ter seu livro. Quando um mercado como esse passa a viver de momento é um sinal ruim... e não sou uma pessoa qualquer para falar sobre livros, estou me convencendo disso".
O peso e a história do sobrenome Martins Fontes lhe conferem razão, que, ao lado de outras famílias, como as de José Olympio e de Jorge Zahar, construíram significativa parte da história da leitura no Brasil. No caso dos Martins Fontes, ela tem início em 1960, com o santista Waldir Martins Fontes, que começou na vida vendendo livros de porta em porta até decidir abrir sua própria livraria no bairro Ana Costa. São 51 anos de páginas, lombadas e capas.
Atualmente, o grupo conta com dois selos, seis livrarias e uma distribuidora. Desse queijo, Evandro comanda o selo editorial que leva o nome da família e as lojas da Alameda Jaú e Praça do Patriarca, na capital paulista, e da Avenida Rio Branco, no coração do Rio de Janeiro. O irmão Alexandre toca o selo WMF Martins Fontes e as livrarias da Dr. Arnaldo e Av. Paulista, em São Paulo. Há ainda a livraria Martins Fontes em Santos, administrada pelos irmãos do fundador Waldir, Walter e Waldemar.
Evandro e Alexandre também dividiram o ouro, literalmente. "Quando eu e meu irmão dividimos os catálogos, pedi um exemplar de cada um deles. Ficam lá em casa, numa estante de mais ou menos dois metros de largura, já abarrotada deles". Ao todo, o Grupo imprimiu mais de 230 mil livros em 2010. Os títulos são, na maioria, clássicos da literatura adulta e infantojuvenil (Onde está o Wally?) e das ciências sociais.
Por coisas do destino, os irmãos Martins Fontes seriam primeiramente seduzidos pelas imagens. Alexandre se formou em arquitetura e foi trabalhar com design. Já Evandro se apaixonou pela câmera, motivado por fotos de viagens de um livreiro português amigo de seu pai, e foi fazer cinema na Escola de Comunicação e Artes, a ECA, na Universidade São Paulo. Em 1984, concluiu a formação na California Study of Arts, em Los Angeles, e por lá por um tempo ficou. Segundo o próprio, o pai fazia questão de que os filhos buscassem seus próprios sonhos. "E, dizia ele, se o livro fizesse parte do nosso caminho, que as portas da Martins Fontes estariam abertas", frisa Evandro.
Entre tantas aventuras vividas em dez anos de carreira como repórter cinematográfico e correspondente internacional, a cobertura mais marcante foi justamente a última. "Durante as festividades dos 50 anos do final da 2ª Guerra Mundial, o então presidente Boris Yeltsin inaugurou na Praça Vermelha um Museu da Guerra, com direito a desfile dos veteranos da guerra na Praça Vermelha sob os olhos de todos os chefes de Estado presentes". Foi em 1995 e Evandro estava credenciado na comitiva do Secretário Geral da ONU, na época o búlgaro Butros Butros Gali. "Tinha todas as credenciais, com acesso quase que total a ele, menos no encontro de cúpula do Museu".
De pé e no frio estava ele lá, carregando nos ombros uma câmera betamax e disputando espaço com um bando de repórteres e cinegrafistas, que, como ele, queriam algum flash do encontro do ano.
"Todos os jornalistas foram barrados na entrada do Museu. Ficamos ali na porta por uns 15 minutos quando vejo a polícia colocando barricadas ao nosso redor. Peguei a mão da repórter, saímos e começamos a rodear o prédio, uma verdadeira fortaleza de extensas paredes. Ao virarmos numa das laterais, simplesmente o Yeltsin decola em seu helicóptero". Minutos depois, seria a vez de Bill e Hillary Clinton. "Eles saíram de uma portinha ridícula, minúscula, pelos fundos do prédio. Estive a dois metros de distância deles, e, com a câmera ligada, soltei um 'Mr.President, Mr.President'... numa fração de segundos, um dos agentes da Casa Branca surgia do nada e me levantava por trás e o helicóptero decola. Imagino que o chefe de segurança da comitiva deve ter levado uma bronca".
Foto: Bruno Cesar Dias
"Acho que sou um editor-livreiro que ainda não sofreu a transformação dessa atual velocidade"
A pré e as pós-histórias da leitura
Cansado das exigências e estafantes rotinas do jornalismo, Evandro decidiu abraçar o ofício familiar e voltou ao Brasil em 1998 para comandar o departamento comercial da Martins Fontes. Com o falecimento do pai, em 2000, e a divisão dos negócios, resolveu passar um tempo tocando diretamente os negócios do Rio de Janeiro, o que iniciou uma nova história: a relação da empresa com o renascimento dos centros das duas metrópoles brasileiras. O primeiro passo foi a transferência da loja carioca da Rua da Alfândega para a Avenida Rio Branco, em 2005. Já a aposta na Praça do Patriarca foi mais sofrida.
"Me vi na contramão dos acontecimentos, pois o centro do Rio continua sendo o centro da cidade enquanto o de São Paulo tornou-se completamente órfão de seus cidadãos". Ele conta com brilho nos olhos sobre a felicidade de descobrir arriadas as portas da loja de rua do Edifício Lutecia. Deixou um cartão de visitas com o porteiro e pediu que o seu contato chegasse nas mãos dos responsáveis. Em poucos dias, um diretor do Museu Brasileiro de Arte (Mabe), instituição da FAAP e proprietária do edifício o telefonou. Com 50 mil livros na estante, a loja é uma atração turística a mais no tradicional largo, o que enche de orgulho o livreiro-editor. No entanto, "são custos altos, posso manter por conta da editora. Quando ela empata os custos com as vendas, fico satisfeito".
A próxima aposta desse editor-livreiro é o Leblon, bairro onde, em suas precisas palavras, circula a elite intelectual brasileira. Localizada em um pequeno espaço na Dias Ferreira, a loja terá também um pequeno café. Mas qual o ponto de encontro dessas paixões? "Acho que há certa coerência... as livrarias do centro, a publicação de obras tradicionais. Quer coisas mais clássicas do que essas? O que faz de algo um clássico? É aquilo que tem uma vida longa, e isso é o nosso perfil, que define o espírito da Martins Fontes, e não só meu, também do meu irmão, dos meus tios. È vida longa. Além de publicar livros que sabemos que não vendem muito, mas que vão vender sempre. Não me interessa ganhar dinheiro com livros que vendem muito num ano e depois não mais".
Para Evandro Martins Fontes, a chave do livro e da leitura é feita de tempo, e não de tecnologia. "O livro tem vida longa e sua natureza é lenta. Publicamos textos com mais de seis mil anos. Além disso, ele leva tempo para ser editado, passando por revisões, traduções e projeto gráficos, e, principalmente, leva tempo para ser vendido, pois é capaz de ficar anos no fundo da estante até ser descoberto por um leitor".
É essa natureza particular desse objeto relacional com mais de 500 anos que o faz desconfiar das tão badaladas plataformas digitais. "Se você tem um equipamento que te permite reproduzir som, imagem e texto, para que ficar vendo algo exatamente aquilo que o livro apresenta? Só para reduzir os custos de papel? O livro no aparelho digital vai deixar de ser livro. E isso já aconteceu, o livro vem do pergaminho, que não é livro. Veja, nem acredito muito nesses devices aí. Estamos vivendo a pré-história desse novo dispositivo eletrônico, de uma nova forma de apresentar conteúdo".
Em meio aos misturados sons de pássaros com carros num casarão no bairro do Sumaré, em São Paulo, Evandro segue percorrendo e produzindo sonhos, conhecimento, histórias e arte, numa engraçada dicotomia entre o ser editor nesse admirável mundo virtual e manter a alma de livreiro. "Sou um publisher, pois disponibilizo e produzo conteúdo, mas, acima de tudo, acredito no livro impresso. Não tenho nenhum projeto, por incrível que pareça, para disponibilizar meus livros em formato digital, e estou tão ocupado com a manutenção desse meu modelo de negócio que não penso em publicações para e-book nem tão cedo", encerra Evandro Martins Fontes, que enxerga no seu ofício toda a pressão e sabor vivido dentro de uma cozinha. "Gosto de pensar no meu ofício como alguém que põe esses pensamentos para assar e vê alguns bolos solarem, outros passarem do ponto de tirar, e aqueles que saem ótimos, assim, como um cozinheiro de ideias". Palavra de chef.
Atualizado em 6 Set 2011.