Guia da Semana

Foto: Sxc.hu


Mesmo que Hugo Chaves não acredite, que Fidel faça discursos cheios de pompa e promessas revolucionárias e, ainda que a ditadura norte coreana seja acometida por delírios atômicos, o socialismo real, que muitos odiaram e amaram, cada vez mais se torna coisa dos séculos passados: Um colosso romântico e frustrado, concebido no século XIX, o século das grandes idéias, e materializado no século XX, o século das grandes transformações.

Hoje o mundo respira capitalismo, velocidade, mobilidade. É um mundo engravatado, decorado por telas de LCD e plasma. Sai os tons verde-oliva e acinzentado das grandes paradas militares, cheios de megalomania belicista e culto a imagens, e entra a estética colorida da linguagem do consumo e da publicidade. Admirável mundo novo!

E onde está o ódio proletário? E a ganância burguesa? Se desfizeram no tempo? A guerra de classes ainda sobrevive. E está bem viva no nosso cotidiano. Quem já não foi receptor da fúria de uma atendente desalmada que parecia só querer gerar o caos? E quem já não foi vítima de um chefe arrogante, impiedoso e careca? O front da guerra de classes se estende aos bares, restaurantes, estacionamentos e escritórios. Seus personagens (e soldados) são os clientes, as secretárias, os gerentes e superiores, os porteiros e os moradores. Enfim, estamos em guerra.

Um dia desses, fui visitar o pós-apocalíptico centro de São Paulo. O centro me remete a um cenário de guerra atômica, um Mad-Max. Fui acompanhar minha querida mãe num passeio que tinha como objetivo conhecer as belezas escondidas do centro da cidade. Estávamos procurando o antigo prédio da prefeitura. Buscávamos informação. Avistamos, entre mendigos dormindo na rua e já com as narinas anestesiadas pelo cheiro fétido de excrementos humanos, dois policiais. Fomos até eles:

"Com licença, por acaso os senhores sabem onde está o prédio da prefeitura?"

Fez-se alguns segundos de pausa silenciosa. O olhar cansado dos policiais buscava firmemente meus olhos. Era um olhar cheio de descrença e violência. Um deles respondeu, não economizando no sarcasmo:

"Primeiro é bom dia... Aqui ninguém é funcionário de ninguém... Para onde os senhores querem ir? Morumbi?"

Logicamente evitei responder esta pessoa. Agradeci e me retirei.

Logo depois deste episódio, fui acometido por raiva. Tanta raiva que havia decidido mudar de país. Mas depois, mais serene, refleti sobre o ocorrido. O policial é uma vítima. Trabalha o dia inteiro, frente a frente com o esgoto produzido pela nossa sociedade, e ainda é mal remunerado. É só nestes momentos, quando avista dois "burgueses curiosos indefesos" e vomita neles todo seu ranço e frustração, que ele consegue subverter a ordem das coisas, a ordem medíocre a que foi condenado. No gesto pouco gentil do policial, há muito desespero, muito revanchismo. Nos maltratar, para estes homens a serviço do estado, até mesmo serviu de realização sexual. Mas vamos parar com a psicanálise de Freud por aqui.

Karl Marx acreditava que capitalismo carrega em seu ventre as contradições que o farão sucumbir. O dia chegará em que um cliente, estressado e arrogante, protesta pelo catchup estragado e sujo oferecido à mesa do bar. Os atendentes, humilhados e descrentes, retrucam esguichando jatos deste mesmo catchup na camisa do cliente-reclamão. Os clientes se unem e partem para o ataque em jorradas de maionese e mostarda. O conflito se espalha. Nações entram em guerra. Os arsenais atômicos são disparados. Será o fim da civilização.

Só sobrarão as baratas mutantes - habitantes de frascos velhos de catchup, mostarda e maionese.


Leia as colunas anteriores do Ibrahim:

? Saint Patrick´s day: considerações sobre as frias e competitivas relações dentro do mundo das grandes corporações.

? A internet e a verdade: você acredita em tudo que lê? Na era da internet fica difícil distinguir a verdade da mentira!

? Estrangulamento estético: São Paulo é um exemplo de que o brasileiro não cuida do espaço público!

? As vaias nos jogos Pan-americanos: a brasilidade e o homem cordial explicam as vaias dos torcedores brasileiros nos jogos Pan-americanos.

? Tiozão way of life: o colunista desvenda o estilo tiozão, tipo cada vez mais identificado pelas noites da vida!

? Brasil, o mais antigo modernoso: um país de estilo moderno-antigo, formado por uma cultura alegre e despretensiosa!

? Big Mac responsável: está na hora de mudar o estilo de vida e de consumo, em prol da saúde do planeta!

? O bom gosto e arte na vida: a definição de bom gosto perdeu o sentindo com a inversão dos valores da sociedade.

Quem é o colunista: Ibrahim Estephan

O que faz: Cursa administração de empresas

Pecado gastronômico: quibe assado da minha avó libanesa

Melhor lugar de São Paulo: Minha casa

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.