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Para ouvir: In my place, do Coldplay.
É terça-feira. 19h30. A marcha nupcial é tocada, as portas se abrem e você surge de braços dados com seu pai. A cena se passa como em um comercial. Perfeito. Tudo nos lugares. Ou quase. Muito provavelmente deve estar carregando um buquê de rosas vermelhas, embora eu tenha rido muito quando você me disse que não sabia o significado das cores. Também isso agora pouco importa. Sua mãe não deve se conter de tanto orgulho em ver a filha subir ao altar.
Chove forte. Preparei meu uísque, uma dose bem caprichada e fui olhar pela janela. Comecei a escrever sem intenção ou pretensão de fazer nada com essa carta. Queria na verdade escrever em uma máquina antiga, tipo Hemington, com meus medos criando uma sinfonia enquanto os pingos descem pelo vidro com tamanha velocidade que me lembram estrelas cadentes, como uma que vimos e festejamos naquele último inverno quando passamos no Sul, na casa dos seus pais, sem despertar a menor suspeita.
Sabe o que eu lembrei? Duvido que ela esteja usando luvas, ou se estiver deve tá com muito mal-humor, você sua muita nas mãos, deve tá louca para tirá-las.
As horas vão passando e eu fico imaginando cada detalhe do seu casamento. Olhei o envelope e tive a certeza que foi você quem escolheu: prata com letras caprichadas em preto. Bom gosto. Por um momento, já com o álcool invadindo minha corrente sanguínea, afastei as poltronas da sala, liguei o som e dancei com o volume no máximo. Girei, girei muito e por um momento as imagens ficaram turvas, minha vista escureceu e caí sobre meu copo. Cortei minha mão e não conseguia levantar, certamente se você estivesse aqui brigaria comigo e depois cairíamos na risada.
[Silêncio sem lágrimas]
Eu cheguei a ensaiar um choro, mas desisti. Você nunca me viu chorar por completo, nunca deixei, aquele abraço na boate não vale, era choro de bêbada. Se você é orgulhosa, eu sou o dobro. Terça-feira, dia besta, bobo. Acho um dia ideal e combina bem com esse acontecimento. Tenta caprichar nas fotos para lembrar daqui a algum tempo com um sorriso de canto de boca que você costuma dar quando fica sem graça.
Fui lavar as mãos na pia e o sangue foi tingindo a louça branca e indo embora pelo ralo. Lembrou-me uma coisa: seu marido vai ter que se acostumar aos seus dias, a gente sempre riu falando como é complicado ter duas mulheres morando juntas e tentando sobreviver aos dias de Chico. "Bendito é o Chico entre as mulheres", falávamos juntas e ríamos juntas do trocadilho infame.
Abri a janela e veio um grito trazido pelo vento frio da rua: "Sapatão!". Toda vez que sofro por um amor vem esse grito de algum lugar. Parece que minha mãe fala e chega até meus ouvidos.
Ô terminho, bem "inho" pra me descrever. Sempre odiei ser chamada assim, vinha sempre na minha cabeça aquela caminhoeira, mãos grossas, de macacão, peluda que fica gritando no gargarejo do show da Ana Carolina. Sempre brinquei de boneca e nunca de carrinho. Nunca quis ser homem e sempre odiei ser comparada a esses estereótipos. Certamente se fosse homem e viado seria pior: não poderia andar de mãos dadas pela rua com um homem porque, ao contrário da gente, não é "comum".
Vontade de abraçar alguém, mas minhas mãos agarraram um espaço vazio. Nosso cachorro ficou num canto, observando inerte minha inquietação. Acho que vou sair, assim mesmo com essa chuva caindo forte e vou para a porta da igreja jogar alguns punhados de arroz ou ver de perto se você teve ousadia de usar um buquê de rosas vermelhas. Vou rir por fora e chorar por dentro da cena.
Vou torcer pelo seu sorriso. Mesmo. Se te faltou coragem em me assumir com medo depois de ter ouvido tua mãe falar da sapatão da sua rua: "Graças a Deus, na minha família não tem isso!" Fecho os olhos e minhas pálpebras pesam como a dor de um amor que vai ficar preso nas minhas gavetas.
[Silêncio com lágrimas]
Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.
O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.
Pecado gastronômico: Mousse de Cupuaçu.
Melhor lugar do Brasil: Av. Paulista de madrugada.
O que está ouvindo: White Shadows, do Coldplay.
Fale com ele: [email protected]
Atualizado em 6 Set 2011.