Guia da Semana

Foto: Sxc.Hu



De manhã cedo, antes mesmo de escovar os dentes ou tomar o café, ela liga o computador. Checa os e-mails, apaga scraps inconvenientes, deixa outros estrategicamente para quem fuça seu Orkut e coloca o MSN ligado com status ocupado, mesmo que esteja esperando alguém ficar online.

Gosta que os outros a considerem uma mulher de difícil acesso, embora fique na expectativa de que alguém puxe um assunto qualquer.

Trabalha em casa como designer, construindo sites e em outros projetos gráficos.
Tem predileção por filmes antigos, uma coleção deles já forçara a encomendar um armário novo no marceneiro. Cuida das plantas da casa, coloca inclusive nomes nelas. Ensaiou comprar um cachorro, mas o prédio onde mora não permite. Contentou-se em ver samambaias, roseiras e orquídeas crescerem.

Olhos redondos, pele alva, cabelos lisos na altura da cintura e um corpo torneado com ajuda da genética herdada da mãe, que parece não ver o tempo passar. Mora sozinha, os pais ficaram no interior. Por conta da faculdade foi para a capital e lá ficou. Chegou a dividir por quase cinco anos um apartamento com algumas amigas, mas, há quase seis, mora num pequeno quarto próximo a um parque que costuma frequentar aos domingos.
Já próxima aos trinta, vê com tranquilidade sua solteirice, diz em alto e bom som pra quem quiser ouvir que é "uma tendência moderna" a mulher ser solteira e bem resolvida.

Foi no casamento de quase todas as amigas e, sem que ninguém perceba, volta pra casa sempre um pouco alta pelo álcool e chora na cama ainda com a roupa da festa - e normalmente com um pedaço do buquê da noiva.

Romântica inveterada ainda hoje, também sem que ninguém saiba, assiste programas de TV do tipo que juntam casais e liga o rádio em programas cafonas, com tradução de músicas e dedicações de fulanos para cicranos.

Num sábado desses chuvosos, sem nada pra fazer, em frente ao computador, uma pessoa que não conhecia, nem lembrava como havia entrado na sua lista de contatos, puxou assunto. Ela, claro, o deixou esperando por alguns minutos, até que devolveu um "olá".

Um sujeito usava uma foto em que estava com a língua de fora e nem por um momento inspirava confiança. Mesmo assim, aos poucos, foi deixando de lado o seu orgulho e embarcou naquela conversa. Ela chegou a tirar sarro dele, afinal um advogado de quase trinta anos escrever na linguagem de adolescentes do tipo que escreve "issu, bunita e axo" não entrava na sua cabeça.

Foram quase quatro horas conversando com ele, e nos dias seguintes esse tempo só aumentava. No quarto dia, ela cada vez mais encantada com seu bom humor e a forma como encarava a vida, resolveu abrir a câmera e permitiu que ele também o fizesse.

Adorou sua boca, as tatuagens nos braços e o jeito que fumava enquanto falava com ela.
Um dos seus filmes preferidos era "Nunca te vi, sempre te amei". Um romance em que os personagens longe dessa era cibernética se correspondiam por cartas e marcavam um encontro improvável. Embora sempre desconfiasse de paixões virtuais, resolveu marcar, após quase dois meses de conversa, um encontro. E tal como no filme, no terraço de um famoso edifício.

Enquanto olhava distraída a paisagem da cidade ao fundo com os cabelos sendo despenteados pelo vento, sentiu a mão dele encostando seu ombro.

Leia as colunas anteriores de Guilherme Gonzalez:


Um amor pra reviver

Vez em quando

Na gaveta da memória

Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.

O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.

Pecado gastronômico: Comida de mãe.

Melhor lugar do Brasil: Ilha do Marajó.

O que está ouvindo: Marina de la Riva.

Fale com ele: [email protected]


Atualizado em 10 Abr 2012.