Guia da Semana

Foto: Sxc.Hu



[3h 20min]


Acordei ainda com as pernas bambas, fui ao banheiro com os pés descalços deslizando sobre a lajota fria e dei de cara com meu rosto pálido em frente ao espelho. Subitamente, dei-me conta de quantas rugas você me presenteou, quantos cabelos brancos se perdiam entre meus cabelos negros e quão desgastada era minha imagem agora nessa aparência anciã-juvenil desde que você entrou na minha vida.

Olhei para dentro do quarto e vi nossa cama vazia. Percorri a casa e, no silêncio da madrugada, a cada passo que dava seu rosto ficava presente nas paredes, portas e em cada canto que parava.

Acendi um cigarro e fiquei na varanda, olhando a cidade de cima. Poucos carros passavam. Nos prédios ao lado, algumas janelas com luzes acesas, sombras e reflexos de um televisor ligado. Tomei um analgésico e registrei o tempo.

[4h 50min]

Já com um copo de uísque nas mãos eu ouvia nossos CDs e ficava ao lado do abajur acendendo e apagando a luminária enquanto ensaiava cantar as músicas que me trazia nossa vida de volta, nossos beijos inesperados e nossas trepadas em cada parte daquela casa.

[Silêncio]

Achei no meio do guarda-roupa sua camisa azul que havia escondido quando você fez as malas. Estava lá impregnado seu cheiro. Vazio.

Nenhuma foto, nenhum resquício seu eu permitira que permanecesse perto de mim. Somente aquela camisa e as lembranças que ainda atormentavam minha mente.

Atrás de uma sinfonia eu abri a torneira e deixei a água correr sobre a pia do banheiro. Sem música, só o barulho dela encontrando a porcelana.

[5h 18min]

Quando levantei o rosto molhado e novamente olhei minha imagem naquele espelho, eu lembrei do quanto eu abdiquei da minha vida, da minha carreira, dos meus gostos e vontades por sua causa. Por conta dos seus caprichos de macho reprodutor, eu deitei na cama com você sem vontade, sentindo em sua pele o cheiro de outra mulher misturado ao odor do álcool que emanava com frequência dos teus poros e, naquele momento, eu me dei conta da minha velhice precoce, dos amigos que se afastaram, dos meus pais que não visitava e do que eu me transformara através do reflexo daquele rosto.

Sem titubear, enfiei o dedo na garganta e esperei depois de três espasmos que o vômito viesse rompendo minha garganta e pondo pra fora tudo que estava dentro de mim e, enfim, você saiu.


Como um nadador de salto ornamental, você pulou de dentro de mim e caiu na privada nu, desprotegido. Olhei seu rosto pela última vez misturado ao resto do meu jantar e antes de puxar a descarga eu fiz questão de dar tchau. Enquanto a água levava você rodopiando para dentro do esgoto eu voltei a acionar o botão por precaução. Sabe como é, é melhor prevenir do que remed... Ah, havia esquecido. Você sempre detestou frases feitas.

Sempre teve fascínio pelo novo, o original. Nunca se tocou que o óbvio deixa de ser óbvio quando todos pensam da mesma forma. Talvez por isso, não demos certo. Só talvez.

[6h 5min]

Uma camisa azul masculina cai percorrendo as janelas de um prédio.

Leia as colunas anteriores de Guilherme Gonzalez:

Nunca te vi, sempre te amei

Um amor pra reviver

Vez em quando


Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.

O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.

Pecado gastronômico: Comida de mãe.

Melhor lugar do Brasil: Ilha do Marajó.

O que está ouvindo: Marina de la Riva.

Fale com ele: [email protected]

Atualizado em 6 Set 2011.