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Acordou zonza no meio da madrugada. Os olhos abriram com dificuldade. A visão estava turva e as imagens foram surgindo como fotos reveladas num laboratório. No lado esquerdo da cama uma cortina fina balançava com o vento leve que vinha de fora. Estranhou a claridade do quarto. Um estetoscópio pendurado no pescoço de um homem vindo em sua direção deu a ela a certeza de que estava em um quarto de hospital.
Não sabia porque estava ali. Tudo era fragmentado: as lembranças, as palavras e a sua vida. Sentia-se uma náufraga em busca de um porto seguro ou perdida numa praia em que o mar havia sumido e a areia encobria seu corpo deixando apenas a cabeça de fora.
No decorrer da semana, recebeu muitas visitas e nenhum rosto lhe parecia familiar. Tinha a impressão de ter acordado de um sonho que a jogou no inferno. Os movimentos do corpo estavam limitados, a voz embargada e o pouco que conseguia falar era na língua dos pais falecidos. Sem ter a noção, e por ironia do destino, dormira na cama do mesmo hospital em que trabalhava.
Acostumada a dar diagnósticos desanimadores, salvar vidas e perder outras tantas, ficara presa a um corpo isolado do mundo real. A irmã a encontrou caída no chão do banheiro. Sofreu um acidente vascular cerebral e mais alguns minutos sem atendimento poderia ter agravado ainda mais sua situação.
Duas semanas se passaram e a memória voltou. Não havia ninguém no quarto. Os braços e as pernas ainda sem equilíbrio não permitiram nenhum movimento libertador. Continuou como uma espécie de refém do próprio corpo. Não bastasse a morte repentina dos pais num acidente de carro, ainda enfrentava a partida do avô que morava em outro país e a descoberta de um câncer no irmão mais velho.
Era uma profissional renomada, disputada por hospitais do mundo em virtude dos seus experimentos científicos, tentava em vão segurar os problemas da família com a frieza involuntária dos médicos acostumados a lidar diariamente com a morte.
Sentia-se sempre pressionada. Trabalhava demais e encontrava pouco tempo para viver longe do seu ambiente de trabalho sempre repleto de dor e com a sinfonia angustiante de um choro. Longe dos olhos de todos que a viam como uma mulher segura, costumava no silêncio de casa encontrar o momento de ser frágil e chorar com medo do mundo.
Ficou acordada até a noite encontrar o dia e os primeiros raios de sol invadirem a janela do quarto. Os olhos acompanhavam o cenário daquele lugar sem vida quando viu um pequeno pássaro entrar ali. Permaneceu estática observando aquele ser de movimentos ágeis e com a liberdade pulsante num simples bater de asas.
Encontrou nele a razão para sonhar. Se até então o corpo estava preso, sua imaginação estava livre. E foi com ela que encontrou forças para sair. Já ouvira antes que "não há limites para aquele que possui a capacidade de sonhar" e foi assim que pôde fazer tudo que sempre quis e o que a vida real não mais permitia.
Assim que fechou os olhos pode reencontrar os pais, revisitar países, rever amigos do passado, amores mal resolvidos, tomar banho de chuva, voltar a ser criança, subir em árvores, andar descalça na areia, falar mais vezes eu te amo, olhar com mais atenção o pôr do sol, abraçar desconhecidos e se entregar a paixões sem medo de errar.
Em cada sessão de fisioterapia e aos domingos em que ficava mais tempo sozinha, fechava os olhos e embarcava em sonhos como imagens de um filme. Os cabelos loiros estavam crescendo e os olhos claros ganhavam mais brilho. Sentia tanta vontade de viver que tinha medo de morrer afogada de tanta espera.
O desejo em ser feliz ajudava na recuperação. Em alguns meses estava pronta pra voltar para casa e para sua rotina. Tinha experimentado o gosto do silêncio e agora a fome de viver era outra.
No dia em que saiu do hospital, pediu para a irmã levá-la para a praia. Sentaram-se uma ao lado da outra e por um tempo permaneceram caladas. O azul do céu se misturava ao das águas. Cada pedaço de dor sumia olhando aquela imensidão. Uma lágrima caiu e o seu olhar encontrou a cumplicidade da irmã. Deu um beijo demorado no rosto dela e levantou-se. Abriu os braços e encontrou o vento. Deu um grito preso e correu em direção ao mar. Naquele momento agarrou-se firmemente ao que a tornava humana.
Leia as colunas anteriores de Guilherme Gonzalez:
Ana G.
Luccas
A dama da linha verde
Quem é o colunista: Guilherme Gonzalez.
O que faz: ator.
Pecado gastronômico: Kassler grelhado com batata Sauté e Chucrute.
Melhor lugar do Brasil: Búzios (RJ).
O que está ouvindo: Made for you - OneRepublic.
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Atualizado em 6 Set 2011.