Guia da Semana

Foto: Getty Images


Duas mulheres foram perseguidas por homens, na avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, por causa dos trajes que usavam. Elas se esconderam em uma loja para não serem atacadas. Ambas vestiam calças compridas, despertando assim a ira da classe masculina.

Está achando essa história estranha? Hoje seria, mas, há exatos cem anos, segundo o historiador Milton Teixeira, ela aconteceu. Em 1911, as roupas das jovens foram consideradas um acinte à moral e aos bons costumes. E as duas, confundidas com prostitutas por revelarem, discretamente, o formato do quadril.


A nova tentativa que as fizeram para usar calça comprida no Brasil só aconteceu na década de 20. Afinal, em Hollywood, a peça fazia o maior sucesso. Entretanto, aqui a experiência começou tímida e a tão criticada roupa não era, por assim dizer, como as calças compridas de hoje. Marcar o bumbum e as coxas? Nem pensar! A "Jupe Culotte" parecia um chuchu de cabeça para baixo: enorme no quadril, larga até os joelhos e um pouco mais apertada até os tornozelos. Horrorosa, de fato. Mas despertava a cobiça dos homens da época, vai entender... Talvez por isso, para não serem chamadas de desclassificadas ou coisa pior, pouquíssimas mulheres tinham coragem de usá-la.


Apenas em 1962 a moda da calça comprida se firmou no Brasil. E para quem vestia, quase que escondida, um chuchu ao contrário, a atriz francesa Brigitte Bardot soube ousar com a Saint Tropez, modelo que revelava o umbigo feminino e era bem apertadinha. Preconceito abolido? Nem tanto.


Vamos para os anos de 1972-1973, no tradicional Instituto de Educação - colégio que até hoje forma professores no Rio de Janeiro - e que serviu, inclusive, de cenário da série Anos Dourados, de Gilberto Braga. O grêmio estudantil, do qual eu fazia parte, marcou uma reunião com a diretoria. Antes, vale um parêntese. O nosso uniforme não poderia ser mais clássico: camisa branca de manga comprida, fechada por abotoaduras, e colarinho com uma gravatinha borboleta azul, onde, no meio, havia um broche com o emblema do Instituto. Saia pregueada azul-marinho, um dedo, no máximo, acima do joelho. Por fim, um cinto largo com uma fivela quadrada. Há quase 90 anos o uniforme era igual, acredito que só a saia subira um pouco. Decididamente, não gostávamos da roupa que nos obrigavam a usar. No calor, ela esquentava muito. Devido ao comprimento da saia, a maioria das alunas era chamada de "Maria Mijona" pelos alunos de outros colégios. Apesar desses dissabores, tínhamos orgulho de estudar no Instituto e, por consequência, do seu uniforme.


O problema é que ele era imposto e adolescente não gosta de regras. Fechando o parêntese, voltemos à tal reunião. A nossa reivindicação era uma e apenas uma: queríamos usar calça comprida. A atitude da direção também foi única: encerrou a reunião e nos botou para fora.


A partir daí, colocamos cartazes nos murais, fizemos manifestações em frente ao colégio e passamos a não usar o uniforme como mandava o manual do bom aluno. Por exemplo, íamos sem a gravata, ou sem o cinto, ou com um sapato desaprovado pelo estatuto. Claro que os inspetores arrancavam os cartazes, dispersavam as manifestações e não nos deixavam entrar se não estivéssemos devidamente arrumadas. Mas o burburinho da nossa insatisfação chegou até as outras escolas das adjacências - que já permitiam às suas alunas o uso da calça comprida.


Um certo dia, sem grandes explicações, inspetoras percorreram todas as turmas para uma votação muito especial. Queríamos que a calça fosse azul marinho ou cinza? Com uma urna, elas recolhiam os papeizinhos.


A cor azul ganhou. Duas semanas depois, recebemos o desenho do modelo da calça e as instruções. Deveria ser feita em tergal, ter cós alto, corte reto e não revelar as formas femininas. Pois é, não se pode ganhar em tudo...


O tempo passou. O colégio hoje se chama Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro e funciona no mesmo prédio imponente na zona norte da cidade - sendo cenário da faculdade de Insensato Coração, novela do mesmo autor de Anos Dourados, Gilberto Braga.


E nós, brasileiras, há um século, nunca mais demos sossego aos estilistas. O jeans chegou, usamos calça com boca de sino, com boca fina, pantalona, odalisca, saruel, baggy, justinha, thai, cós alto, cós baixo, com pregas, franzidos, barras dobradas, sem bainha, rasgadas, bordadas e até já a mergulhamos na água sanitária. Tudo o mais que vier será bem-vindo. Calça comprida para as mulheres no Brasil não é só sinônimo de conforto, é também de conquista. Há cem anos, duas moças quase foram linchadas por causa dela. Eu não sou jurássica assim, mas é muito bom saber que fiz parte, com centenas de alunas, de um período importante na história do tradicional Instituto de Educação: o dia em que as saias caíram!

Leia as colunas anteriores de Vera Lucas:

Aventuras de uma mudança

Futura inquilina

P,M,G: fim da tirania

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Atualizado em 1 Dez 2011.