Somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos. Shakespeare, quando fez esta afirmação, nos colocou um problema no que diz respeito ao que seja a realidade da vida. Nós acreditamos naquilo que desejamos e, dependendo da perspectiva, os desejos podem ser nossa única realidade. Todavia, este universo que nos chega através do outro tem como propriedade nos lembrar da matéria da qual somos feitos: carne e desejo. Não só desejo, mas também corpo. É preciso ter um corpo para realizar nossos sonhos. Mas que corpo eu preciso ter para realizar meus desejos? O de Ulisses era o de um guerreiro astuto, o de Helena deveria provocar guerras.
O desejo de aprender pode nos ajudar nesta empreitada. Se quisermos oferecer aos nossos filhos ferramentas para que eles construam uma vida melhor, temos de ensiná-los a perguntar. Uma pergunta impertinente nos projeta para uma resposta pertinente, a impertinência da pergunta está em desafiar as bases de uma visão de mundo. A impertinência começa nos sonhos, ela é a carne do espírito.
Há muito tempo, um homem desejou voar e, diante da impossibilidade de realizar esta empreitada, inventou Ícaro. Quantos séculos se passaram para que o avião fosse criado? Saber perguntar é transgredir. Não com armas, corrupção ou drogas, mas com o pensamento. A natureza não deu asas aos homens, mas lhes deu a imaginação, cujas asas são seus desejos: "eu quero voar". Como a ciência é transgressora. O conhecimento é impertinente na medida em que nos obriga a superar-nos. Isto é pura paixão!
Sabemos que nem todas as verdades são para todos os ouvidos, contudo, onde faltam ouvidos não há o que aprender, porque só se aprende com quem se ama. Aprender a ouvir as próprias verdades corresponde a um trabalho longo, diário e paciente. Hoje em dia, em meio a disputas por poderes de superfície, a verdade se perdeu e, lamentavelmente, com ela a lembrança da matéria da qual somos feitos.
Aprender se tornou sinônimo de profissionalizar, consumir, competir, ter dinheiro. Mas aprender é imaginar como fazer para não sucumbir à estupidez da superfície. Haveria maior satisfação do que conquistar um pensamento livre e criativo, ágil e vigoroso, disposto a fixar-se só se for por paixão à vida?
Porém, quanto mais aprendemos a fazer algo de certa maneira, mais difícil é aprendermos a fazê-lo de maneira diversa. Mas, se isto se consolida, a imaginação sucumbe e a vida se torna enfadonha. A vida rejeita fórmulas, e é por isso que ela é nossa maior aliada. Esta insistência em ver o mundo pelo próprio umbigo, como aquele galo que achava que o sol nascia todos os dias só para vê-lo cantar, produz pressa e ansiedade. Empobrece a todos. Mesmo que um homem sábio nunca possa ser completamente feliz, ele, em sua sabedoria, descobriu que não existe maior felicidade do que se empenhar para saber cada vez mais quais são as perguntas das quais constituem os seus sonhos.
Leia as colunas anteriores de Sócrates Nolasco:
Zolga
Um guerreiro no século 21
Virando a mesa
Quem é o colunista: Sou aquele que deixa o que encontrou melhor do que estava antes.
O que faz: Psicanalista, Escritor e Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pecado gastronômico: Ostras com Cristal do Roederer.
Melhor lugar do Mundo: Yosemite National Park e San Francisco.
O que está ouvindo no carro, iPod, mp3: Yoshida Brothers.
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Atualizado em 6 Set 2011.