Foto: Getty Images |
Para ouvir: algo bem antigo, como Barry White
Certa vez ela leu que ex-namorado era igual a um pedaço nosso que andava pelas ruas, uma camiseta velha que virou pijama ou uma espécie de parente distante, que vez ou outra a gente encontra pela vida.
O fato era que estava se vendo dentro de uma reprise da sessão da tarde, num daqueles filmes antigos tipo A Lagoa Azul, que passa várias vezes ao ano.
Como sempre, ela chegara antes. Como de praxe, estava irritadíssima com a demora dele e com raiva de si mesma por ter a nítida certeza de que já passara por aquilo antes.
Quase dois anos desde que colocaram fim naquele namoro. Um encontro casual aqui ou ali. Poucas eram as chances ou os momentos em que trocaram uma conversa a sós, até o reencontro na pracinha no último sábado. Quando, como amigos que não se viam há algum tempo, colocaram o papo em dia. Nem ele e nem ela queriam admitir, mas havia no ar uma intimidade estranha que fazia eles serem um pouco além de velhos amigos.
Tirou da bolsa da calça um papelzinho com metade de um chiclete que havia guardado e, em pouco tempo, já mascava com tanta força que já virara uma borracha dura dentro da sua boca. Talvez pra aliviar a tensão ou o nervosismo enquanto ensaiava comprar um maço de cigarros, embora não fumasse já havia um considerável tempo.
Ele chegou com a respiração ofegante, culpando o trânsito pelo seu atraso. Os cabelos estavam molhados, levemente despenteados. Ela, pra variar, mentiu afirmando que acabara de chegar. A mesma situação, momentos diferentes.
Combinaram não falar do passado. Na verdade, outra coisa que não queriam admitir era o fim daquele encontro. Ambos sabiam onde acabaria, mas ela, orgulhosa, querendo mostrar que havia mudado, criou suspense e o tempo inteiro não quis demonstrar interesse nele, embora volta e meia seu olhar não conseguisse disfarçar o hipnotismo que a boca dele lhe causava.
Pediram um chopp, uma porção de mandioca frita. Cada um, de um lado do prato, fazia seu montinho de catchup e mostarda. Riam muito dos seus hábitos antigos, como o dele que pedia um copo de água com limão pra beber antes de começar a "rodada" e ela que sempre arrumava os sachês de sal enquanto conversava.
Aquele encontro foi um legítimo déjà vu. Com a diferença de que aquele intervalo de tempo que ficaram separados fez aqueles dois amadurecerem com as relações, pessoas e situações que surgiram nas suas vidas. Tiveram ao longo da tarde a certeza de que eram imaturos na época e isso talvez tenha sido a principal causa de não estarem juntos até então.
Ela havia conhecido um cara que volta e meia usava a frase: "Vamos viver o hoje".
Ela fica irritada com aquilo, mas quando acordou na cama dele de madrugada e olhou para aquele rosto de um homem feito, mas ao mesmo tempo de uma pessoa que lhe trazia sensações e recordações diferentes, ruins inclusive, foi ao banheiro e olhando no espelho, resolveu usar para si aquela frase feita de auto-ajuda. Argh!
Tomou um banho demorado e depois foi comer algo na cozinha. Sabia onde ele guardava tudo: as toalhas, os biscoitos, o leite. Tirou da bolsa um vidrinho de perfume, deu uma baforada no travesseiro ao lado dele, escreveu um bilhete e saiu. Ainda de madrugada ela passeava pelas ruas de São Paulo, com a música no carro bem alta. No som, algo bem recente, longe de qualquer coisa que parecesse Barry White.
Leia textos anteriores de Guilherme Gonzalez:
? Vez em quando
? Na gaveta da memória
? Era de noite..
O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.
Pecado gastronômico: Comida de mãe.
Melhor lugar do Brasil: Ilha do Marajó.
O que está ouvindo: Marina de la Riva.
Fale com ele: [email protected]
Atualizado em 6 Set 2011.