Getty Images |
Para ouvir: The winner takes all na versão do filme Mamma Mia.
Costumava usar um jeans surrado, uma camiseta lisa e uma sandália de dedo nos dias de calor. Trocava apenas os calçados em dias mais frios e colocava por cima do colo um suéter e vez-em-quando um cachecol pra proteger a garganta.
Um lenço ou um acessório tinha que ter brilho em dias de show. Mas no dia-a-dia era uma moça simples, aliás, adorava se sentir assim, simples.
"Sou cantora por hobby", dizia. Trabalhava de segunda a sexta como designer e aos sábados e, vez-em-quando, aos domingos, dava uma canja no bar de um amigo na Vila Madalena.
Ela: Baixinha, olhos caídos, cabelo na altura dos ombros. As pernas havia herdado da mãe, grossas e bem torneadas.
Ele: Alto, olhos grandes, cabelo raspado, barba por fazer. Braços grossos, mãos fortes.
Ela procurava um novo baixista pra banda. Ele havia sido indicado por um amigo em comum. Apareceu com calça xadrez, camiseta rosa e All Star vermelho. "Muita informação", pensou.
Durante a conversa, o tempo inteiro ele permaneceu de óculos escuros. Era cedo e talvez quisesse esconder a cara amassada por ter dormido demais ou de menos. O fato é que lá pelas tantas de cabeça baixa falando sem parar, ele foi limpar as lentes e tirou rapidamente os óculos, naquela fração de tempo, aqueles olhos verdes brilharam com o sol rasgando a fresta do mosaico das janelas, encontrando seu rosto exposto.
Tão bonito que ela desviou o olhar, pegou um copo errado e desceu goela abaixo uma cerveja quente que a fez arrepiar. Ele tinha um sorriso largo, dentes alinhados e havia pedido um suco de cenoura com beterraba. "Parei de beber e fumar já fazia dois meses", ele comemorava.
O baterista a chamou no canto e perguntou o que ela achou. Por mim tá dentro, mas você nem o viu tocar... "Não sei, gostei dele, quero arriscar".
Marcaram para o fim do dia seguinte um ensaio e aos poucos todos foram indo embora. Despediram-se formalmente. Pegou a bolsa encostada na cadeira e, descendo a ladeira em direção ao metrô, alguém buzinou numa moto azul marinho. Ela nem deu confiança. A moto subiu a calçada em sua direção e ele, tirando o capacete, emendou um: "Orgulhosa". Ela percebendo de quem se tratava baixou a cabeça e deu um sorriso de canto de boca, desses bem amarelos, como costumam falar.
Sem pressa, eles trocaram mais algumas palavras até, sem muito esforço, que ele a convencesse de ficar mais algum tempo esticando aquela conversa num boteco próximo à estação. Ela já de antemão avisou: "Meia-noite tenho que ir embora, viro abóbora. Mentira! Tenho que pegar o último trem. Moro em Jaçanã, senão só amanhã de manhã". Riram e durante todo aquele fim de noite e foi assim, vez-em-quando, usavam frases de músicas pra tornar aquela ocasião ainda mais especial.
Lá pelas tantas, ela já alta pela cerveja e ele na água com gás se deram conta do horário. O metrô havia fechado e o jeito foi aceitar uma carona em cima daquela Bis apertada e sem capacete reserva. Fizeram um caminho inusitado pra desviar de um provável encontro com a polícia. Ela preferiu ser a quem não usaria o capacete, colocou o capuz da jaqueta e segurou bem apertado a cintura dele, o vento ia batendo no seu rosto e sentiu-se leve, vez-em-quando gritava uns: Uhus! Ele ria sem parar.
Ela desceu da moto, ele tirou o capacete e ela deu um tchau baixo e, quando trançando as pernas, acelerou de volta os passos e voltou em sua direção e roubou um beijo que o surpreendeu. Ele mal sabia onde colocava as mãos. Sem dar uma palavra ela entrou no prédio, acenou para o porteiro e subiu pelas escadas até seu apartamento no terceiro andar.
Dia seguinte, no horário marcado para o ensaio eles compareceram ambos de óculos escuros, ele no canto com as mãos no bolso, o que mal dava pra perceber suas unhas roídas, e ela no outro canto vendo o repertório escolhido.
Foram suspeitos de um crime perfeito. Mas crimes perfeitos não deixam suspeitos? Cúmplices, não falaram nada sobre aquele beijo. E foi assim durante muito tempo. Colegas de profissão trocavam vez-em-quando algumas palavras sobre os shows. Guardaram pra si aquele segredo compartilhado até que...
Leia textos anteriores de Guilherme Gonzalez:
? Na gaveta da memória
? Era de noite..
? Amor não se verbaliza no tempo
O que faz: ator e produtor, um dos fundadores da Cia Teatro de Janela.
Pecado gastronômico: Mousse de Cupuaçu.
Melhor lugar do Brasil: Av. Paulista de madrugada.
O que está ouvindo: White Shadows, do Coldplay.
Fale com ele: [email protected]
Atualizado em 6 Set 2011.