Guia da Semana




Em setembro de 2005, as livrarias brasileiras ganharam um pedacinho da cultura carioca. Não, não é um tratado sociológico sobre os morros e a violência. É um bem-humorado e antropologicamente rico Manual de Sobrevivência nos Butiquins mais Vagabundos, escrito pelo cantor e compositor Moacyr Luz e ilustrado pelo cartunista Jaguar.

Cidade da boemia, o Rio de Janeiro tem mais história nos "butequins" que nos museus. Literalmente falando, é claro. Os balcões de mármore, os azulejos azuis, o porta-bala Juquinha giratório, o copinho americano, o pôster do Mengão, a lingüiça acebolada, o aviso de "Não vendemos fiado", a cerveja trincando e muita conversa de bar. Tudo no melhor estilo pé-sujo. Quantos refrões já não saíram dos botecos? Quantas poesias escritas no guardanapo? Quantos sambinhas batucados na caixa de fósforo?

Boteco de verdade é aquele em que, antigamente, mulher não entrava. A não ser para tirar a pança do marido do balcão ou trocar o refil da Coca-Cola para o almoço. Adentrar um butequim, em qualquer lugar do Brasil sem ter lido essa cartilha de Moacyr pode causar certos constrangimentos. Item essencial na prateleira de um boêmio que se preze, o Manual de Sobrevivência traz à tona as características de um típico e simplório estabelecimento que resiste ao tempo e à moda pé-limpo, onde quer que ele esteja. Em homenagem à essa obra-prima, o Guia da Semana monta um resumo básico do manual para você não fazer feio por aí.


A batata frita
Moacyr alerta: batata frita, "mermão", é coisa de mané. Para completar o mico, é só pedir ketchup. Freqüentador que é freqüentador de boteco pergunta se "ainda tem o caldinho, um peito desfiado, a costelinha ou o lombinho defumado" do cozido do almoço. Conclusão: batata-frita só em casa.

A cerveja
Nada de mandar degelar na água corrente, procurar promoção nos cartazes de mulheres semi-nuas. Muito menos conferir a validade e fazer malabarismo com a garrafa para ver se a bebida está choca. Tomar sem colarinho, para não fazer bigode de espuma, e pedir para embrulhar o que sobrou é vexame na certa. Conclusão: simplesmente peça a garrafa. Butiquim que é butiquim serve a loira de 600 ml. Para saber se a cerveja é consumível, o ideal é dar uma de migué: "Ô Ernesto, faltou luz na região ontem ou hoje? Não? Então me dá uma bem gelada. Tira lá do fundo".

O churrasco
Viu fumaça, achou o boteco. E o churrasco tem que ser feito pela própria clientela. Basta montar aquela churrasqueira primitiva, de tijolinhos, cobrir o chão para a carne não ficar com gosto de asfalto... E por aí, vai. Para acender o carvão, outra novela e muitas artimanhas: jornal velho, querosene, sebo de carne, tábua de bife para abanar. Vale tudo para reunir os amigos e não encher a paciência da mulher em casa. Coitado do gerente. Conclusão: botequim sem churrasquinho não é botequim pé-sujo.

O guardanapo
Esta aí algo que pouca gente repara. Moacyr só decidiu incluir o quesito guardanapo em seu manual quando parou para prestar atenção nos nomes fantasias de certos bares, todos em homenagem às suas notáveis condições de higiene. "Rei da Mosca, Cospe Grosso, O Baratinha do Bairro". Tem aquele clássico, que escorrega na gordura do salgadinho, não limpa a mão coisa alguma e ainda gruda no bigode ou no batom. Desperdício de papel aquele em quatro dobras, porque ninguém lembra dos outros lados. Antigamente, os mais cuidadosos eram de tecido e vinham até quentinhos. Dava até dó de usar. Os espertinhos faziam bom uso das toalhas de mesa. Conclusão: se quiser mesmo desengordurar dedos e boca, leve o seu de casa.

A mulher e o banheiro
Como já dito, nas épocas remotas, mulher não passava do batente de um botequim. Se quisesse algo, tinha que pedir ali da portinha mesmo, para não "criar intimidade". Hoje em dia, se tem que algo que impede a mulher de entrar no bar, esse algo não é o marido, mas o banheiro - aquele, apertado e escuro, cuja chave fica no bolso do garçom. Conclusão: se o estabelecimento não estiver na calçada da sua casa, amiga, leve um rolinho de papel higiênico na bolsa. O banheiro nunca está 100%. Se bem que tanto faz depois da segunda garrafa.

Limão da casa e o prato feito
Da série "botequim que é botequim": tem que ter os dois itens na lista de especialidades. O limão da casa só é digno de respeito se for espremido na colher e acrescido no copo com açúcar em abundância e aguardente daquela bem destilada, de garrafa fechada com rolha. Se o limão for do pé de casa, melhor. Em relação ao prato feito, nem pense em querer saber como ele é preparado. Conclusão: não dá para saber se "o tamanduá de estimação do vizinho que sumiu há três dias seja o mesmo acepipe guisado na taberna do cearense". Degluta com batida de limão da casa.


Serviço
Manual de Sobrevivência nos Butequins mais Vagabundos
Autor: Moacyr Luz
Editora: Senac Rio
Ano: 2005
Média de preço (em livrarias): R$ 40,00

Atualizado em 6 Set 2011.