Guia da Semana

Por Bruno Cesar Dias

Na parede, ladrilhos hidráulicos azuis e brancos dividem espaços com fotos antigas do Rio de Janeiro e quadros com prêmios e matérias jornalísticas ampliadas. Sobre a mesa, o garçom deixa o chope da companhia líder, que desce estupidamente gelado pela garganta. À boca vem aquela vontade de pedir o seu petisco, porção ou até mesmo prato preferidos: pode ser um filé Oswaldo Aranha, uma empadinha de camarão ou caldinho de feijão preto, quem sabe até uma sardinha frita. O samba da Portela de 1978 que sai do som com MP4 se mistura ao palavrório das inúmeras rodas de conversa, deixando a impressão de que o tempo passa como que a beira-mar... Mesmo que dentro de um shopping center.

Se você é morador das grandes capitais brasileiras e tem como lazer conhecer e aproveitar bares e restaurantes, já deve ter visitado alguns vários estabelecimentos que se encaixam na descrição acima. Nem parece, mas já se vão 15 anos que esse modelo de bar chegou com tudo, como quem veio para ficar: os botecos pé limpo (ou boteco chique ou bar gourmet), case de sucesso absoluto no mercado da noite e cujo modelo foi replicado pelo país inteiro.

Os ventos da redescoberta da cultura boêmia carioca começaram a soprar forte no final da década de 1990. O lançamento da Feira da Rua do Lavradio e os primeiros esboços do Guia Rio Botequim são dessa época. Mas foi necessário um grupo de paulistas para formatar o conceito, que, segundo Ricardo Garrido, surgiu por acaso. "Em São Paulo, os bares estavam cada vez mais sofisticados. Não havia um lugar para se tomar um bom chope de chinelo e bermuda. Essa raiz estava restrita a poucos estabelecimentos, localizados no centro antigo e em bairros afastados das áreas de economia mais dinâmica", comenta Garrido.

Um antigo armazém no bairro de Moema foi o ponto escolhido por Garrido e mais quatro amigo para abrir um estabelecimento com esse perfil. As reformas, que se limitaram à instalação da cozinha, mantiveram o antigo ar de empório. Nascia em 1996 o Original. "Resolvemos fazer uma série de citações aos bares tradicionais do Rio e de São Paulo tanto no espaço como no cardápio. O que nos surpreendeu foi que a carência por esse tipo de lugar se mostrou muito maior do que esperávamos", ele comenta.

Comida na mesa

Motivados pelos inúmeros clientes que identificavam traços de bares tradicionais da Cidade Maravilhosa na loja de Moema, Garrido e os amigos resolveram passar quatro dias no Rio 'bebendo' na fonte. A viagem foi tão rica que, em vez de apenas novos produtos, surgiu um novo projeto: o Pirajá, lançado em meados de 1998. O sucesso foi ainda mais estrondoso, levando ao surgimento dos "primos" Genuíno, Filial, São Cristóvão, e por aí vai: em comum, a ambientação: salão amplo, citações à boemia, ao passado nostálgico do samba, da bossa nova e do futebol.

Já o serviço está longe do oferecido pelos proprietários portugueses e velhos garçons, comumente com anos de bar nas costas, de segunda a segunda e que são parte fundamental da boemia carioca. Esse ar caseiro, bonachão e desligado foi deixado de lado, e no lugar, entrou a dita eficiência e eficácia do serviço e formalidades paulistanos: cardápios elaborados (muitas vezes por famosos chefs consultores como Ana Soares e Carole Crema) com referências cruzadas à gastronomia do bar carioca; garçons zelosos e ávidos para vender todos os serviços oferecidos pela casa, asseio e pontualidade nos horários de abertura e encerramento.

"A grande sacada do Pirajá foi oferecer refeições tradicionais da cozinha carioca, como cozido, bacalhau, filés altos, no ambiente de bar, coisa que aqui em São Paulo não existia, e adaptar ao estilo e serviço que os paulistanos estão acostumados" comenta Francisco Vince de Moraes, professor de economia da ESPM. Apaixonado pelas boemias carioca e paulistana, Vince destaca ainda a visão de grupo implementada no Original e Pirajá. "Além da novidade, eles foram extremamente profissionais, investindo até em plano de carreira para os funcionários, o que garantiu todo esse sucesso".

Atualmente, Garrido e os amigos comandam a Companhia Tradicional de Comércio, que além das duas casas, tocam as redes Pizzaria Braz, Lanchonete da Cidade e os bares Astor e Adega Bottagallo.

Franquia Rio

Do outro lado da Dutra, a história é parecida. "Foram cinco amigos que se juntaram para fazer o projeto há 10 anos. O que aconteceu é que eles se inspiraram nas mesmas fontes utilizadas pelo pessoal do Pirajá, o que gerou uma confusão desnecessária", comenta Mariano Ferreira, 36 anos, carioca formado em Engenharia Naval que apostou no modelo, negociou a cessão da marca em 2004 e hoje administra a expansão do Botequim Informal.

A rede chegará ao final de 2011 totalizando 16 lojas, com as próximas inaugurações concentradas em shoppings center. A rede conta com uma cozinha central, produzindo alimentos para as lojas próprias e franquias, e emprega hoje cerca de 600 funcionários. "Temos um modelo de sucesso que o cliente reconhece como um produto de qualidade, e replicar esse modelo em outras praças é o ideal. A nossa padronização demonstra ao cliente que ele vai encontrar a mesma qualidade em todas as lojas a que ele for", comenta o empresário.

Como em São Paulo, uma série de outros empresários cariocas seguiu a fórmula e abriu novos estabelecimentos, como o Espelunca Chic, ou revitalizou antigas marcas, como o Belmonte. E assim aconteceu no Recife (Boteco), Porto Alegre (Tipo Bar Exportação), Florianópolis (Bar Carioca da Ilha) e outros. Em todos eles, o clima de Rio de Janeiro e seus produtos culturais, como o samba, a bossa nova, o futebol, vem em primeiro lugar, constituindo, nas palavras de Fabio Duarte, arquiteto e professor titular de gestão urbana da PUC-Curitiba, "um Hard Rock abrasileirado" .

"Ao mesmo tempo em que qualificam e diversificam o varejo de alimentos dos bairros onde estão instalados, os pés limpos colocam valores históricos em circulação e estimulam a dinâmica das cidades. Mesmo que haja o cliente que só irá conhecer e se satisfazer com as cópias, haverá outros que se proporão a explorar os espaços autênticos. Quanto à massificação, não é fácil para os varejistas manter certos padrões de qualidade e propostas, como possui o Original, por exemplo. O cliente sabe perceber isso", destaca Duarte.

No final do chope, ganham todos: a cozinha brasileira acelera sua nacionalização pela baixa gastronomia; os varejistas (de todos os tipos) que exploram o nicho, os clientes que recebem e percebem um produto elaborado (e, consequentemente, mais caro do que o consumido no boteco tradicional) e a cidade do Rio de Janeiro, que mantém sua fama de porta de entrada da brasilidade. No entanto, os empresários sabem que mistérios e novos formatos estão a pintar por aí. "A cultura carioca que permeia o botequim passa pelo samba, pelo futebol, pelo carnaval. É muito assunto passando pelo Rio. No entanto, há outros modelos de bar brasileiro, como o mineiro e o do interior paulista, diferentes entre si e de todos os demais. São modelos ainda não descobertos, mas que vão aparecer com força mais para frente", destaca Ricardo Garrido.

O Original e suas cópias - Veja onde encontrar o Rio de Janeiro mais perto de você

São Paulo

Original
O primeiro "pé limpo" na certidão de nascimento, inaugurado em 1996. O fato de estar no bairro de Moema, um dos preferidos dos cariocas que vem morar em São Paulo, ajudou a popularizar o formato.

Pirajá
Segundo estabelecimento da Cia Tradicional de Comércio, localizado na Av. Faria Lima, coração financeiro de São Paulo e orientado a ser o território da carioque na capital paulista. Foi um dos primeiros estabelecimentos na categoria bar voltado ao público A/B a investir em pratos para o almoço, como Filé Oswaldo Aranha e a tradicional feijoada (paulistana) de sábado.

Genuíno
O pacato bairro da Vila Mariana conta com esse charmoso pé limpo, que oferece jardim interno, mesas na calçada e atendimento primoroso. Além do chope bem tirado, das porções e pratos, investe em promoções temáticas.

São Cristóvão
A Vila Madalena tornou-se o reduto dos pés limpos em São Paulo, com as mais variadas opções, dos que cumprem a lição de casa à risca aos mais desinteressantes. O São Cristóvão faz bonito ao apostar no universo do futebol, com as paredes decoradas com recortes e fotos de jogadores e times.

Salve Jorge
Com duas unidades (Centro e Vila Madalena), o bar aposta nos famosos Jorges, nacionais como o Jorge Benjor, e estrangeiros, como George Benson, além de porções fartas e saborosas.

Rio de Janeiro

Botequim Informal
O primeiro estabelecimento carioca a investir no modelo, conta atualmente com oito casas, e até o final do ano promete inaugurar outras cinco. Porções que juntam a tradição carioca e mineira, como a chapa mineirinho, fazem sucesso entre o público.

Espelunca Chic
Tudo aqui é milimetricamente desenhado e de muito bom gosto, quase ultrapassando o limite entre um bar mais informal e tornando-se um restaurante. No entanto, o chope e pratos como o picadinho garantem a fama de pé limpo do local.

Conversa Fiada
Segue o mesmo estilo do Botequim Informal, investindo também em shoppings e numa divisão de eventos, levando o bar carioca para qualquer espaço.

Mofo
Aqui tudo é mais cool do que nos demais irmãos de boemia limpa. Os móveis são mais escuros, o ambiente é mais sóbrio, mas a proposta é a mesma: pratos e petiscos tradicionais em roupagem elaborada.

Belmonte
A casa de Antônio Silva já passou por todos os momentos possíveis, de um típico pé sujo na orla da Praia do Flamengo na década de 1980 até a explosão limpinha, quando foram inaugurados mais cinco unidades. Do mesmo grupo, faz parte o Antônio's.

Curitiba

CanaBenta
O restauranteur Délio Canabrava, da Cantina do Délio, da doceria Bella Banoffi e outros estabelecimentos, inaugurou o CanaBenta em 2009 e já ganhou prêmio da crítica especializada como melhor boteco da cidade. Mesmo que não assumam a inspiração carioca, santos, placas de ruas e quadros antigos garantem o ambiente sujinho elaborado.

Aos Democratas
Futebol, MPB e samba formam a trinca do Aos Democratas, inaugurado em 2003. O clima descontraído e o atendimento simpático somado ao chope bem tirado fazem do bar (que inaugurou sua primeira filial em 2010) um sucesso de público, principalmente com os não-curitibanos que vivem na cidade.

Brasília

Boteco
Outra rede que aposta nos sabores e na malemolência do Rio de Janeiro. Nascida no Recife há 12 anos, começou a estender suas unidades para outros estados. A unidade de Brasília foi inaugurada em 2008.

Porto Alegre

Tipo Boteco Exportação
Porto Alegre também possui seu pedaço do Rio de Janeiro. Para bem diferenciar do tradicional bar gaúcho, com suas carnes no espeto e sanduíches Xis, a estrangeiridade está logo no nome.

Goiania

Glória
Até no alto cerrado a praia chegou. Em homenagem ao tradicional bairro carioca, o Glória aposta numa decoração caprichada, com fotos da Igreja do Outeiro (da Glória), do Hotel (Glória, hoje em reformas) e da Praia do Russel, entre outras.

Fortaleza

Boteco
Mais um estabelecimento do grupo recifense que divulga a cultura carioca pelo Nordeste. Padrões e decoração são feitos pelo escritório de arquitetura do grupo, com poucas variações de um para outro.

Belo Horizonte

Urca
Mais um bairro homenageado numa cidade não-litorânea. Dessa vez, a charmosa e recatada Urca está em pôsteres, fotos antigas, nas porções e petiscos.

Atualizado em 1 Dez 2011.