Restaurante de vários cifrões. O cliente abonado olha o cardápio com ares de crítico. Por incapacidade de julgar, aceita a indicação dos funcionários que, pensando nos 10%, sugerem o prato e o vinho mais caros. E então degusta, usando um repertório pseudo-enogastronômico aprendido na mídia. Passa o resto da noite tecendo comentários, com nomes em idioma estrangeiro, sobre a uva, a região vinífera, blá, blá, blá.
Sempre defendi que gastronomia é uma forma de arte, por isso não quero com essa crítica nivelar por baixo chefs e amantes da cozinha. Mas, você, que gosta de se render aos prazeres da mesa, já teve a sensação de que comer e beber está ficando cada vez mais chato?
Diversos pensadores, filosofando sobre a função da arte, concordaram que sua principal função é salvar o homem da chatice do dia-a-dia. Diante das privações e dores do mundo, a arte é uma forma de nos transportar, ainda que por uma brevidade, para outra dimensão, mais livre e plena, trazendo frescor à alma e prazer aos sentidos. Uma música, um filme ou uma pizza são capazes de nos acalentar, aliviar e divertir.
O problema é que, desde os primórdios da civilização, há uma relação perniciosa entre arte e elite. Dado que o artista tem na arte seu veículo de sustento, precisa vendê-la e ceder aqui e ali para produzir o que agrada ao público.
De outro lado, a elite econômica nem sempre é uma grande conhecedora, comprando arte como forma de comprar nobreza, refinamento, sensibilidade, conhecimento e influência. No Renascimento, novos burgueses financiavam a produção de pinturas como mecenas. Em troca, controlavam os temas abordados e saiam bonitos em retratos poucos fiéis à realidade. No século XIX, não havia fidalgo que não "entendesse" de poesia, nem bom partido que não escrevesse poemas de amor. Nos anos dourados, mocinhas de família tocavam piano e falavam francês.
Neste início de século XXI, a elite econômica apropriou-se da gastronomia. Mostrar-se um apreciador da "boa cozinha" e arriscar-se nas panelas é mais chique que recitar Victor Hugo!
Tenhamos cuidado para que a gastronomia não seja tomada por uma complexidade, luxo e glamour falsos e perigosos, que apenas sustentam uma legião de chefs amargos, preços salgados e clientes insípidos.
Apóio o comensal que não "entende" de comida, mas se interessa e se entrega a ela. Teorizar o prazer é como teorizar o amor. Quem precisa disso? Precisamos é vivenciá-lo, com a ingenuidade de uma criança e a vibração de um adolescente. Voilá.
Quem é a colunista: Com formações em Publicidade e Gastronomia, Rosa Fonseca é hoje colunista e banqueteira.
O que faz: Compõe a cozinha do Félix Bistrot, restaurante francês. Paralelamente, também é redatora e consultora de comunicação.
Pecado gastronômico: Chocolate.
Melhor lugar do Brasil: Florianópolis.
Fale com ela: [email protected]
Atualizado em 6 Set 2011.