Guia da Semana

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No pop e no rock elas têm lugar garantido. Já no hip hop, a luta por mais espaço decente e por menos machismo vergonhosamente continua. Não bastasse a temática toda do racismo que não acaba nunca, ainda tem o estigma bitch da mulher na cena black. O drama é grande mas nem tudo está na lama. O meio underground só cresce e é lá que o movimento feminino tem encontrado força. Aqui no Brasil, por incrível que pareça, a produção de black comercial não ganhou força. Vez em quando se ouve na rádio um Hey, senhorita, mas, sem chance.

A cena brazuca hip hop de verdade é predominantemente off market e, apesar de poucas, as garotas se encontram nela sem grandes problemas. Em homenagem a elas, o Sesc Pompéia, em São Paulo, sediou a festa Hey Ladies na sexta passada, 13 de junho. Além das convidadas brasileiras Lurdez Da Luz (Mamelo Sound System), Stephanie (Simples / Pau Di Dá Em Doido), Flora Matos MC (artista do Selo Equilíbrio, de KL Jay, dos Racionais) e DJ Abstemious (Artifício), o projeto Oneself, do DJ Vadim e da MC Yarah Bravo, marcou a noite na Choperia.

Antes e depois do show, o russo Vadim, conhecido por seu hip hop criativo, incrementado com samples que coleta por aí em suas viagens around the world, e sua mulher, a MC Yarah, baixinha e enérgica, com um vozeirão funky-soul de cair o queixo, conversaram com o Guia da Semana sobre o estereótipo da mulher no hip hop e a cena como um todo.


Vadim: "o estereótipo da vadia espanta as mulheres da cena"

Foto: Camila Miranda


Guia da Semana Você já conhecia as ladies que vão cantar hoje aqui no Sesc? Você acha que falta mulher no hip hop?
Acho sim, acho que não tem mulher suficiente no hip hop. Tudo seria melhor se mais mulheres subissem ao palco. Há algumas mulheres na cena, mas, infelizmente, elas são populares por usarem pouca roupa e aparecerem semi-nuas em videoclipes de rappers homens. A Foxy Brown, por exemplo, tira a roupa e fica na piscina. É esse o estereótipo que se tem do que as mulheres são no hip hop. E é justamente por isso que elas não entram na cena, Elas devem se sentir como objetos de desejo, algo beirando a prostituição. Repare, sempre tem um rapper e 50 vadias na piscina. Mas, mesmo assim, existe toda uma outra cena que não está na MTV. É possível ver mulheres que são vistas não pelo que elas (pouco) vestem, mas pelo que elas fazem. A Yarah é um exemplo delas e está sempre encorajando as garotas a assumir o microfone nos palcos.

GDS O que te irrita na cena hip hop?
O estereótipo gangsta. Os caras fazem isso por dinheiro, é uma marca. Acho que de todos que clamam ao microfone que são gangstas somente 1% é de verdade. Eu não sou gangsta, não vendo drogas, não quero ir pra prisão (risos). E também não quero ouvir e fazer música que glorifique isso. O hip hop é algo bem maior, é uma música de propósito maior. Não precisa ser esse lance de gangsta para sobreviver.

GDS Você conhece o rap daqui? Qual sua opinião sobre ele?
Eu não sei dizer nomes de grupos e artistas, mas as pessoas que já comentaram comigo sobre o hip hop do Brasil dizem que ele é bastante engajado, criticam o governo e os ricos, talvez racismo, escravidão e todas essas coisas. Os rappers dos EUA também fazem isso, mas são poucos. Mas a maioria é como o 50 Cent. Ele não canta nada, só besteira. É tudo em torno de guns, drugs, money, bitches. Acho que há similaridades entre o Brasil e os Estados Unidos nesse aspecto. Vocês têm pessoas muito ricas e pessoas muito pobres. Eles, apesar de erguerem a bandeira do "eu sou o país mais rico do mundo", têm muita gente pobre, sem assistência médica, sem muito o que comer. Eu nasci na Rússia, mas saí de lá há 20 anos, mais ou menos. Divido minha vida entre Londres e Nova Iorque. Então eu noto isso por lá. No entanto, o hip hop lá é muito mais uma celebração do dinheiro, da riqueza. É muito materialista. Aqui no Brasil talvez exista esse money talk, mas não no mesmo sentido. Sinto que na música rap brasileira há uma alegria, fala-se de outras coisas como família, valores.

GDS O que tem ouvido no seu Ipod?
Dá uma olhada aqui. Tem o disco novo do Al Green, Lay it Down, o Los Angeles, do Flying Lotus, What hapenned, do J-Live, tem Lucky I am também; o novo do The Roots, Rising Up. Eu amo The Roots. É esse tipo de música que tenho ouvido. Mas costumo ouvir todos os estilos. Adoro reggae, soul, funk, drum´n´bass. Gosto do DJ Marky! Ele é muito conhecido lá fora. De música brasileira ouço Bossa Nova, coisas do Carlinhos Brown, Gilberto Gil. Lá em Londres têm muito funk carioca também.


Yarah: "neste ano as coisas mudam"

Foto: Camila Miranda


Guia da Semana Você que está na cena hip hop pode nos dizer, como é a participação das mulheres?
Há mulheres na cena, mas deveria haver mais. Acho que esse ano a coisa muda. Eu faço parte de um festival grande de hip hop, o Hip Hop Kemp. Ele acontece todo ano na República Tcheca, geralmente no final de agosto, e é considerado um dos maiores festivais do gênero no mundo. Há seis que eu me apresento e desde então eu fui a única garota a subir ao palco. Fiquei brava com a produção e decidi que ia mudar esse quadro. Como assim só tem uma garota? Há tantas na cena e eu sou a única? Reclamei, reclamei, reclamei e eles ficaram tão perturbados comigo que me deram um palco, a grana e me liberaram para chamar quem eu quisesse. Até já escolhi um nome para o palco, vai se chamar Unity. Tirei esse nome da música da Queen Latifah, U.N.I.T.Y.

GDS E quem você escalou?
Nos dois dias só teremos mulheres rappers se apresentando. Vai ser incrível. Estamos também em fase de reestruturação do formato. Queremos fazer competições entre as cantoras, que vêm de toda Europa, América, Austrália. A atração principal do line-up feminino neste ano é a Roxanne Shanté, uma cantora old school de hip hop; Bahamadia, que fez trabalhos com o The Roots, também estará lá. Teremos camisetas, logos, DVDs do show para ajudar na divulgação. Acho que esse é o ano para as rappers na cena underground do hip hop. Mostraremos a eles que somos alguém nessa cena. Tem muita porcaria hoje, mas acho que conseguimos uma perspectiva melhor no hip hop para as mulheres.

GDS Você gostou do show das meninas aqui na Hey Ladies? Já tinha ouvido brasileiras nos vocais?
Eu já tinha ouvido caras rapping em português, mas nunca garotas. Achei fantástico. Foi muito interessante. Achei o som delas muito, muito bom. Faz tempo que não vou a um show ao vivo e fico impressionada assim. Elas eram mais calmas, não ficavam andando para lá e para cá como eu. Mas as vozes são incríveis e o flow é muito bom. Agora eu posso dizer que as incluí na minha lista de female girls no hip hop underground.

GDS E quando você se viu fazendo hip hop?
Eu amo música, de todos os tipos. Quando eu tinha 10, 11 anos eu descobri o hip hop. Eu o descobri ouvindo Public Enemy. Eu tinha mania de escrever poesia, escrevia o tempo todo e ainda não sabia o que era o hip hop. Daí ouvi Public Enemy e deu um estalo. "Uau, isso tem a ver com a minha rima". Era a mesma coisa, mas faltava a batida. E eu nunca tinha ouvido poesia com batida antes. Fui a lojas de discos e comecei a comprar álbuns instrumentais, chegava em casa e encaixava minha poesia. E funcionou! Eu estava fazendo rap. Depois eu comecei a ouvir hip hop sem parar. Eu gosto de música que signifique algo, por isso não gosto desse lado comercial do hip hop. Tem muita besteira. E eles colocam a mulher lá embaixo. Para mim não tem graça. Gosto de algo que estimule a mente, que me faça evoluir. Hoje ouço bastante soul, funk, reggae. Ando ouvindo o novo álbum da Sharon Jones com os The Dap (???). Adoro bandas como o The Roots, amo o Freestyle Fellowship, da West Coast, Icon, de Nova Iorque.

GDS Você disse durante o show que seu pai é brasileiro. O que você conhece da nossa música?
Eu amo música brasileira. Amo samba, bossa nova... Meu cantor favorito é o Caetano Veloso, gosto também do Gilberto Gil. Quando eu era criança não conseguia dormir se não ouvisse samba. Toda noite meu pai tinha que me pegar no colo e colocar samba para eu ouvir. Meu pai é brasileiro, mas eu nunca morei aqui. É a terceira vez que venho para cá. A primeira vez eu tinha 12 anos, a segunda foi oito anos depois e agora, com 26 anos, para tocar aqui. Já fui duas vezes ao Chile também, minha mãe é de lá. Morei na Suécia até os 18 anos, depois mudei para Londres. Desde então eu vivo viajando, moro em Nova Iorque, São Francisco. Em julho eu mudo para Berlim. Adoro a cidade. Vadim não me acompanhará nessa viagem, porque eu vou pra lá gravar meu disco, preciso focar no trabalho. Mas é pertinho, só duas horas no avião.

Atualizado em 6 Set 2011.