Por Marjorie Ribeiro
1969. O Brasil vivia sob a censura e a falta de liberdade do AI-5, em um dos períodos mais críticos da ditadura militar. Enquanto isso, surgia um grupo de baianos e uma niteroiense (Baby Consuelo) que iriam converter em arranjos abusados o espírito libertário de uma geração. Os Novos Baianos fizeram, em pouco tempo, o país cantar samba e cadência regionais brasileiras em riffs pesados de guitarra e bateria.
A formação do grupo teve o dedo de grandes tropicalistas, mas foi João Gilberto, o mestre da bossa nova, quem injetou brasilidade naqueles jovens cabeludos que pendiam mais para o rock' n' roll - como deixa claro o LP de estreia, É Ferro na Boneca (1970). O casamento perfeito desses ritmos é escancarado em Acabou Chorare (1972), que foi ovacionado pela crítica e considerado o melhor álbum da história pela revista Rolling Stones.
A obra-prima foi toda produzida coletivamente no sítio em Jacarepaguá, onde viviam de forma comunitária (e quase anárquica) em pleno regime militar. Todo o dinheiro ganho nos shows era colocado numa sacola e cada um tirava dali o valor que queria quando precisasse, sem nenhum controle. "Achávamos que íamos mudar o sistema, o que não sabíamos é que o sistema era tão forte", diz Galvão, o poeta do grupo, no documentário Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas, que teve co-estreia este ano.
Os filhos apareceram e o grupo aos poucos se dissolveu no fim da década de 70, e a maioria dos integrantes seguiu carreira-solo. O ex-guitarrista da banda, Pepeu Gomes, bateu um papo com o Guia da Semana sobres influências musicais, o fim dos Novos Baianos e o atual momento da música brasileira. Confira!
Guia da Semana: O filme Filhos de João, Admirável Mundo Novo Baiano ressalta a importância de João Gilberto na formação da banda, gostaria que você falasse um pouco sobre isso.
Pepeu Gomes: O Galvão já era amigo do João Gilberto de Juazeiro, foi ele quem fez o contato para que o João fosse nos conhecer no apartamento em Botafogo, no Rio de Janeiro. Queríamos fazer música brasileira e internacional de raízes misturadas e foi o João quem nos mostrou o caminho. Sempre fomos fãs do seu trabalho e a convivência com ele foi a melhor coisa que aconteceu nos Novos Baianos. Ele me ensinou a ser um músico universal, tocar samba e qualquer ritmo na guitarra, bandolim, cavaquinho, e a dar importância a esses instrumentos na música brasileira, que naquele momento estava esquecida. Fizemos um regional brasileiro com os acordes de Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo, tentamos imitá-los em Noites Cariocas, Brasil Pandeiro e isso deu uma personalidade muito forte ao grupo e uma direção muito significativa. O João foi fundamental no posicionamento cultural dos Novos Baianos.
Guia da Semana: Para você, qual foi o principal legado da banda para o cenário musical brasileiro?
Pepeu Gomes: O Tropicalismo, os Novos Baianos e os Secos e Molhados foram os grandes movimentos da música brasileira. Você vê hoje artistas novos e de qualidade, mas não vê movimentos que se possa pleitear por uma vida social melhor, por democracia, por um não à censura, pela valorização do livre-arbítrio. A chegada dos Novos Baianos não veio só com música, veio com mudança de comportamento e linguagem. Os artistas de hoje vêm com a proposta de fazer sucesso, a banalização é muito grande. Não se pode esquecer do lado cultural, que temos Drummond de Andrade, Huberto Rohden e uma série de poetas e pensadores que fizeram nossa história. Os Novos Baianos vieram com tudo isso.
Guia da Semana: Você foi considerado um dos dez melhores guitarristas do mundo pela revista norte-americana Guitar World. Quais suas influências musicais?
Pepeu Gomes: Nasci em Salvador, minha principal influência veio dos trios elétricos. Com 14 anos, gravei meu primeiro disco, era o tempo em que o rádio era brasileiro, tocava Brasileirinho, Delicado [ambas de Waldir Azevedo], uma série de monstros sagrados que me encantaram. Foi essa referência que me fez virar músico. Quando fiz 18 anos, conheci o Gil no show Barra 69, no qual tive o privilégio de acompanhá-lo na sua despedida do Brasil. O Gil me mostrou um disco de Jimi Hendrix, chamado Smash Hits e ali virei guitarrista. Pensei, "quero tocar igual a esse cara", aquilo pirou minha cabeça! O grande barato do meu trabalho é essa alquimia de misturar guitarra com bandolim, cavaquinho, de não ter vergonha de ser brasileiro e tocar nossos ritmos que são maravilhosos e respeitados no mundo inteiro. Tenho muito de Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Pixiguinha, Ary Barroso, João Gilberto, misturado com Jimi Hendrix e Eric Clapton. Sou apaixonado pela música americana, mas ela é só um gosto, a minha referência é a brasileira.
Guia da Semana: Em 1975, Moraes Moreira deixava os Novos Baianos. Como vocês encararam a saída dele naquela época?
Pepeu Gomes: Ele era o coração da banda. Eu cuidava dos arranjos e divisão de instrumentos, mas o Moraes cuidava das composições [junto com Galvão] e isso era o eixo principal da personalidade dos Novos Baianos. Ficamos baqueados com sua saída. Perdemos uma estrutura e tivemos que construir outra para que o grupo sobrevivesse por mais quatro anos. Depois da saída do Moraes, a banda ficou um pouco mais rock'n'roll, já que tínhamos essa formação mais forte.
Guia da Semana: O filme mostra que o afastamento de Moraes Moreira da banda está ligada à saída dele do sítio em que vocês viviam...
Pepeu Gomes: Depois de dez anos de convivência juntos, nasceram os filhos e eles começaram a pedir coisas que até então nós não nos preocupávamos, como escola, comida, roupa... e naquela maneira louca que vivíamos não tínhamos condições de atendê-los. Vivíamos para tocar e jogar bola, mais nada. Logo depois da saída do Moraes, o Dadi também sentiu essa necessidade e saiu, em 1978. Quando eu já tinha dois filhos, também sai. A dissolução do grupo foi um processo natural, difícil, mas aceitável. Em 1997, nos reunimos de novo para fazer o álbum duplo Infinito Circular, resgatamos nossa intimidade musical e fizemos onze músicas, foi maravilhoso. Temos que envelhecer com dignidade e solidariedade, lembrar que passamos momentos de sofrimento e de felicidade juntos. O grupo terminou por uma ordem natural das coisas e não por nenhum tipo de forçação de barra, porrada, briga, guerra filosófica ou poética.
Guia da Semana: Como é sua relação atual com os ex-integrantes da banda?
Pepeu Gomes: Superlegal, minha relação maior é com o Moraes. Com o fim dos Novos Baianos, fizemos um encontro em 89-90 e gravamos dois discos. Alguns músicos dos Novos Baianos ainda tocam comigo também. Todo grupo tem suas discordâncias, duas pessoas vivendo juntas já é complicado, imagina 27, cada um com sua opinião, maneira de pensar e criar. E o filme retrata exatamente isso e mostra o lado bom e o legado que a banda deixou para a música brasileira.
Guia da Semana: Vivemos um momento em que música e Internet estão extremamente conectadas, baixa-se disco e artistas como o Chico Buarque se apresentam na rede. Qual sua opinião a respeito?
Pepeu Gomes: A Internet é maravilhosa, mas uma faca de dois gumes. Fazer um show pela Internet é fantástico, totalmente terceiro milênio, eu só acho que a Internet tinha que ser um pouco mais controlada. Tenho 38 discos e 348 músicas gravadas e meu direito autoral é totalmente desconectado com relação ao tamanho da minha obra.
Guia da Semana: O que você tem escutado ultimamente e que artistas da nova geração destacaria?
Pepeu Gomes: Tenho descoberto muitos discos bacanas, tem uma turma de São Paulo que tenho curtido muito, o Ortinho, Curumin, Marcelo Jeneci, a Tulipa Ruiz... como estou compondo com Arnaldo Antunes, conheci essa turma. As meninas da Barra da Saia também é um grupo maravilhoso. Sou vidrado na música brasileira, continuo ouvindo Chico Science que é uma referência absolutamente fantástica.
Guia da Semana: Quais seus próximos trabalhos?
Pepeu Gomes: Estou gravando o DVD Pepeu Gomes toca Novos Baianos Entre Outros, em que faço a leitura da obra da banda com a visão rock'n'roll, e um CD instrumental. Tanto o DVD quanto o CD estão previstos para sair entre o fim do ano e começo de 2012. E tem o Rock in Rio, dia 30 de setembro, com Monobloco e a banda espanhola Macaco.
Atualizado em 1 Dez 2011.