Há 54 anos, o público do Theatro Municipal do Rio de Janeiro assistia a uma peça que já nascia clássica ao mesmo tempo em que era transgressora. Escrita por Vinícius de Moraes, musicada por Tom Jobim e com cenários de Oscar Niemeyer, Orfeu da Conceição se baseava no mito grego de Orfeu e Eurídice, mas usava como temática o morro carioca, o carnaval e, pela primeira vez no Brasil, trazia aos palcos atores negros como protagonistas. O texto ganhou tanta notoriedade que serviu de base para o filme Orfeu Negro (1959), de Marcel Camus, ganhador do Oscar estrangeiro em Hollywood.
Mais de meio século se passou até que o diretor Aderbal Freire-Filho decidiu fazer uma releitura do espetáculo, rebatizado de Orfeu. Érico Brás e Aline Nepomuceno revivem o amor idílico, agora com a direção musical de Jaques Morelenbaum e a coreografia de Carlinho de Jesus. Em curta temporada pelo Brasil, a montagem estreou no Rio de Janeiro e passa por São Paulo, Brasília, Goiânia, Porto Alegre e Curitiba. Veja abaixo o bate papo que o Guia da Semana teve com os dois atores baianos que interpretam o casal de alma, jeito e malandragem carioca.
Guia da Semana: Como você entrou no processo de seleção da peça?
Érico Brás: Sou amigo de Lázaro Ramos há muito tempo e trabalhamos juntos no Bando do Teatro Olodum. Ele tinha sido convidado para o papel principal, mas como estava envolvido em outros trabalhos, indicou-me para a peça. Aderbal Filho e Jaques Morelenbaum conheciam meu trabalho em Quincas Berro D'Água e me colocaram no elenco. Quando nos reunimos para iniciar os ensaios não tínhamos personagens definidos e duas ou três pessoas estavam especuladas para fazer o Orfeu. Após duas semanas de ensaio, decidiu que eu faria e a expectativa acabou. De lá partimos para a montagem, que exigiu dois meses de trabalho.
Guia da Semana: Qual a sensação de ser protagonista de uma peça referência no Brasil?
Aline Nepomuceno: Foi uma surpresa, pois apesar de ter passado na audição e fazer parte do elenco, não sabia qual papel faria. Descobrimos quem faria os personagens somente depois de três semanas de ensaios - antes disso, fazíamos um rodízio até a definição dos nossos papeis. Fiquei muito feliz em sair do meu lugar de origem para fazer um personagem de destaque, além de estar com um diretor que todo mundo quer trabalhar. Isso gera uma responsabilidade, já que as pessoas não conhecem meu trabalho nos palcos no Rio de Janeiro.
Guia da Semana: Antes de ser chamada, você tinha algum contato com o repertório do espetáculo, as músicas de Vinícius?
Aline: Conhecia poucas, já que não é um som que a gente costuma ouvir na Bahia; diferente do Rio de Janeiro, onde as pessoas respiram o poeta. Comecei a pesquisar sobre o tema, procurei as músicas e ouvi. Foi um universo apresentado para mim de maneira muito grandiosa, uma coisa nova, mas que é tão real, tão poético, que mexeu muito comigo. Tanto que, mesmo depois do processo terminado, minha curiosidade ainda continua muito grande sobre o tema.
Guia da Semana: Qual a importância de uma montagem dessa para o teatro brasileiro?
Érico: O Vinícius de Moraes foi muito feliz em fazer essa adaptação há mais de meio século. Foi importante por diversos fatores, mas uma coisa que marca é que, quando foi encenada, quebrou o tabu no Teatro Municipal, que pela primeira vez tinha atores negros pisaram neste tablado. A arte tem esse poder, essa função. A tragédia grega que Vinícius adaptou para os morros do Rio de Janeiro foi fenomenal. Além disso, essa obra revoluciona aquele momento, colocando a música popular brasileira no nosso teatro, propondo o encontro meteórico de Vinícius de Morais e Tom Jobim. Eles escrevem as músicas e daí em diante tornaram-se parceiros para o resto da vida. A minha impressão é que as músicas que eles fizeram têm sempre o Orfeu, até porque o espetáculo fala da música, fala do amor, fala desse conflito com a morte, que a gente nunca consegue resolver. O mais importante é que diz especialmente do poder da música e da poesia na vida.
Guia da Semana: Como você definiria a personagem Eurídice?
Aline: Construí a Eurídice como se fosse uma menina descobrindo o amor. Usando a sensualidade, mas sem apelar para o erotismo, deixei com um jeito moleca, inocente. Ela está apaixonada por Orfeu, mas está descobrindo as coisas de uma maneira encantadora. Por isso seus movimentos são leves e ela exala poesia.
Guia da Semana: Sentiu alguma dificuldade para encenar o papel principal, sendo você um baiano de nascimento na pele de um carioca no morro do Rio? Érico: Isso não foi difícil. Os morros, as comunidades e as favelas são a mesma coisa em qualquer lugar. Claro que cada uma vai ter sua particularidade, mas acho que cada morro, cada comunidade, cada favela tem o seu jeito de ter e ser Orfeu, todas elas têm problemas. A única preocupação que tive foi a de manter a fidelidade do que Vinícius escreveu, porque a primeira versão se passava em um morro dos anos 50 e tivemos que transpor isso para agora, com a violência de hoje. O Aderbal sugeriu coisas, propôs novos personagens e a gente conseguiu ser fiel ao roteiro original.
Guia da Semana: Apesar do morro não ser o mesmo de meio século, a temática do amor ainda está presente. O que mudou da primeira montagem para essa?
Aline: Aderbal está retratando o universo de hoje sem perder aquilo que foi escrito e montado antes. Pra mim é grandioso porque moro na favela, moro do Vidigal. Quando vim para o Rio de Janeiro decidi morar lá para conhecer as pessoas de perto. Foi por isso que comecei a perceber a sensibilidade do diretor, construindo esses tipos de personagens que existem na vida real. Quando subo o morro vejo essas pessoas. Isso é bacana, pois faço um trabalho de laboratório lá e construo meu personagem.
Guia da Semana: No momento em que os musicais da Broadway invadem o Brasil, vocês trabalham em um genuinamente brasileiro e de referência internacional. O que você pensa sobre isso?
Érico: Acho que é muito bacana ver os musicais americanos chegar, mas é importante produzir os nossos, com a nossa cara. O Orfeu é um texto que marca a história do cinema, do teatro, da literatura brasileira e merece estar em um palco como musical do jeito que é. Acho que quando a gente monta um musical desse estamos mostrando que também sabe e pode fazer. Isso é bacana porque rola uma troca, a gente mostra o nosso, eles mostram o deles, tiramos várias coisas, e vemos que o nosso teatro está livre e muito vivo. Não só o Orfeu, mas outros que virão por ai serão responsáveis por uma nova página do teatro brasileiro.
Aline: Nosso musical é mais humano, pois ele fala das pessoas de verdade. A gente canta com a alma, prepara vocalmente e corporalmente. Não é aquela coisa grandiosa demais que foge da realidade, com atores brasileiros que vão por um outro caminho, representam a coisa de longe. Não! A gente representa o que temos no Brasil, é um musical genuinamente brasileiro, com repertório de Vinicius e retratando a realidade do povo.
Guia da Semana: Como você definiria a história de amor entre Orfeu e Eurídice?
Érico: Como vem da mitologia e isso a gente acredita ou não, na minha condição de ator eu preciso acreditar, para que a representação seja verdadeira. Mesmo assim creio que seja um amor possível. A gente vê este tipo de amor mais intenso a maioria das vezes nas novelas, na televisão, no filme, mas se a gente prestar atenção, as pessoas se amam assim também nas comunidades, nas favelas, e não conseguimos ver isso representado dessa forma. Esse amor existe de fato, um amor que vai do extremo da vida ao extremo da morte e, nesse caso do Orfeu, é muito especial, porque tem algo que conduz isso que é a música, a poesia musicada.
Serviço:
Rio de Janeiro
Canecão
Data: de 9 a 19 de setembro
São Paulo
HSBC Brasil
Data: de 23 de setembro a 3 de outubro
Brasília
Teatro Nacional - Sala Villa-Lobos
Data: de 08 a 10 de outubro
Goiânia
Teatro Rio Vermelho
Data: 14 de outubro
Porto Alegre
Teatro do SESI
Data: 22 e 23 de outubro
Curitiba
Teatro Guairá
Data: 27 e 28 de outubro
Atualizado em 1 Dez 2011.