Guia da Semana

Fotos: divulgação


Em meio à ditadura, os jovens exerciam sua liberdade de expressão na plateia dos grandes teatros, onde aconteciam os festivais de música brasileira. Lá, o debate ideológico ganhava o campo musical com ares de luta livre. Uns, a favor das letras de contestação política e do purismo nacionalista, outros sob influência das vanguardas estrangeiras e a experimentação da riqueza multicultural do país. O resultado era uma enxurrada de vaias e aplausos, com novos intérpretes e compositores despontando no cenário nacional.

É nesse clima que se ambienta o longa Uma Noite em 67, dirigido por Ricardo Calil e Renato Terra. No documentário, canções como: Alegria, Alegria, de Caetano Veloso; Domingo do Parque, de Gilberto Gil; Maria Carnaval e Cinzas, de Roberto Carlos; Ponteiro, de Edu Lobo; e Roda Viva, de Chico Buarque, disputam o lugar mais alto do palco, enquanto entrevistas com críticos, jurados e cantores apontam para os possíveis vencedores. Com imagens resgatadas da TV Record e apresentando o embate entre o Tropicalismo e a Bossa Nova, o filme empolgou o público do Festivais de Paulínia e É Tudo Verdade, em São Paulo.

Para quem não esteve lá, uma boa chance de vivenciar um momento único; para quem conviveu na época, um documento rico e importante para rememorar momentos áureos da música popular brasileira. Confira a entrevista com os diretores sobre o longa que entrou em cartaz emno dia 20 de julho.

Guia da Semana: Exibido no Festival de Paulínia, o filme lotou a sala e foi aplaudido de pé. Como vocês encararam essa reação do público?
Ricardo Calil:
Fiquei muito feliz! Primeiro, me emocionei com o cinema, enorme e com uma boa projeção, valorizando o filme. Outro ponto positivo foi a sala cheia e as pessoas rindo e se emocionando na hora certa. Algumas cantaram e até acompanharam as músicas. Tentamos transmitir neste filme a experiência daquele festival para as pessoas sentirem como estivessem lá ou que tivessem voltado para aquela época.

Guia da Semana: Essa ideia de falar sobre os festivais de música surgiu de um trabalho de conclusão de curso. Qual foi o caminho percorrido até a sua produção?
Renato Terra:
Quando estava no último ano da faculdade, em 2003, fiz minha monografia sobre a era dos festivais, já que tinha pouca bibliografia sobre isso e o Zuza Homem de Mello ainda não tinha lançado A Era dos Festivais (editora 34). Em 2005, comecei a trabalhar com o Ricardo e pela história dele com cinema, o convidei para fazer o filme comigo. No ano seguinte, conseguimos 10 minutinhos com João Moreira Salles; a reação dele foi melhor do que a gente previa e, no dia seguinte, ele já estava defendendo nosso filme para o produtor Maurício Ramos. A partir daí, entramos na linha de produção.


Renato Terra e Ricardo Calil, diretores de Uma Noite em 67

Guia da Semana: As entrevistas são um ponto alto do documentário. Além de trabalhar com personagens muito ricos para a história, por vezes falam por si só. Como foi na hora de colher esse material e quais as dificuldades que vocês passaram?
Renato:
Nos preparamos muito para falar com os entrevistados. Um exemplo foi na entrevista com Chico Buarque, quando levantamos a questão do surgimento do tropicalismo e a polaridade com o Caetano. Ele foi superficial no primeiro momento, mas fomos incisivos - citamos um artigo de jornal escrito pelo Chico na época, alguns fatos que aconteceram - e ele foi dando mais detalhes que culminaram naquele depoimento. Fora isso, pegamos a equipe que trabalhou com Eduardo Coutinho, que conseguia criar um ambiente para dar mais cumplicidade ao entrevistado. Tudo isso resultou em bons depoimentos, como o próprio Chico afirmando que estava bêbado em muitos encontros da época.

Guia da Semana: Vocês tiveram muita dificuldade para chegar ao Roberto Carlos, uma personalidade que dificilmente concede entrevistas?
Ricardo:
Para isso, o Zuza Homem de Mello foi fundamental. Ele foi consultor do nosso filme e o grande historiador desse período. Em 1967, ele era técnico de som e, desde então, era amigo do Roberto. O Zuza fez o meio de campo com o Roberto pra fazê-lo dar o depoimento. Ele mesmo conduziu a entrevista, fazendo a maior parte das perguntas, até para conseguir esse clima de cumplicidade.

Guia da Semana: E para vocês, qual a importância do festival de 1967 para a música brasileira?
Renato:
Foi importante por ter o embate entre aceitar ou não a influência estrangeira na música brasileira. Outro fator foi a consolidação dos compositores. Antes, tínhamos a Elis Regina, o Jair Rodrigues, a Elza Soares, etc. Artistas que apenas interpretavam canções de outros. Já neste, os quatro primeiros colocados foram compositores que subiram ao palco para cantar suas músicas. Fora isso, a gente acredita que Alegria, Alegria, Domingo no Parque, Ponteiro e Roda Viva dão a indicação do que seriam as obras de cada um a partir daqueles anos. O Caetano, inteligente e provocador, pegando elementos da vanguarda internacional e fazendo coisas além da música; o Gil, com um viés mais musical, pegando influências do mundo inteiro e misturando com canções brasileiras; o Chico, se consolidando como um compositor mais denso; e o Edu Lobo, trabalhando na pesquisa dos ritmos regionais brasileiros e revolucionando isso.

Guia da Semana: O público que participava desse festival recebia influência para vaiar ou aplaudir determinado artista?
Ricardo:
Na época, existia um grupo grande de nacionalistas, pessoas que tinham um projeto de esquerda para o Brasil e buscavam músicas com um conteúdo e mensagem políticos. Nessas músicas, se encaixavam compositores como Chico Buarque, Edu Lobo, Geraldo Vandré e Sérgio Ricardo. Tinham outros que gostavam da Jovem Guarda do Roberto Carlos e eram taxados de alienados, por ouvir um rock n´roll abrasileirado. Nesse instante, Gil e Caetano chegaram para bagunçar o coreto, porque pegavam a música brasileira somando com elementos de guitarra. As pessoas se confundiram com essa atitude, achando que estavam se vendendo à influência estrangeira, embora eles absorvessem a vanguarda internacional, mas conservavam a música de raiz brasileira.



Guia da Semana: Sérgio Ricardo foi um grande injustiçado nesse Festival?
Renato:
Sim! Sérgio Ricardo fez a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol, foi o primeiro a adotar uma temátiva social enquanto a bossa nova ainda falava de banquinho e violão, e fez diversos outros trabalhos. Não só foi injustiçado porque não deixaram cantar sua música direito, mas também ficou marcado todo esse tempo por quebrar o violão e atirá-lo ao público. A gente espera que o filme provoque nas gerações mais novas o interesse de ouvir suas músicas.

Guia da Semana: Um, festival desse porte teria espaço hoje em dia?
Ricardo:
Existe muito boa música sendo produzida e seria muito desejável que houvesse um canal que aglutinasse vários jovens compositores. Mas as tentativas recentes de promover festivais nunca tiveram o impacto parecido por uma série de circunstâncias da época, como uma geração muito rica que surgiu da bossa nova, o clima político, os CPCs criando música social e a noite de São Paulo. Tudo isso em uma TV que contratava os artistas e colocava no horário nobre, com audiências muito maiores do que as novelas de hoje, mas só tocando música.

Atualizado em 1 Dez 2011.