Guia da Semana



(Trova do movimento popular em defesa da Amazônia, cantado por Nilson Mendes)

O que ficou para trás não importa quando a canoa adentra o açude com cara de igarapé. Aqui e agora, só a sinfonia de pássaros e insetos, o marulho da água e o verde movimento da natureza, num ritmo perene e constante, como se fossem durar pela eternidade. No entanto, engana-se que não vê ou não percebe as transformações vividas nesse pedaço de mata, que há menos de 30 anos era lavado a sangue, e hoje é um polo pioneiro para o desenvolvimento econômico e social da região do Alto Acre, juntando extrativismo, cultura, natureza e história. Sejam bem-vindos ao Seringal Cachoeira.

Estamos no extremo-sul de Xapuri, a 33 quilômetros do centro da cidade e mais de 400 da capital do Estado, Rio Branco. A partir da BR-317, um ramal - como os acrianos chamam as estradas de barro abertas na base da picada - serve de caminho para adentrar a região. Com cerca de 400 hectares de mata nativa, o Seringal Cachoeira é o maior de todos, batizando a localidade. "Mas não tem cachoeira, não. Esse nome é muito antigo, por conta da queda d'água que de cachoeira não tem nada. Quando quiserem colocar o nome mandado pelo fazendeiro, ninguém chiou, mas também ninguém usou, e foi ficando o Cachoeira".

Quem conta é Nilson Mendes, de 48 anos. Nascido de pais acrianos com origens paraenses, o caboclo foi criado no seringal desde os seis anos e começou a trabalhar na extração da borracha antes dos 20. O ofício é a principal atividade da família Mendes, cujo filho mais ilustre é o líder sindical Chico Mendes, de quem Nilson é primo.

Apogeu e decadência de um ciclo

O seringal é tão integrado à história do Acre que nomes como ramal, via e bandeira, os tipos de marcações feitos nos troncos para extração da borracha, foram incorporados para a localização dentro da floresta. A biodiversidade, tão badalada nos dias de hoje, também é uma velha conhecida. "Essa piper (nome popular para distinguir a família das piperíceas, da qual faz parte a pimenteira) tem um estimulador de olfato. Se usar direito, sente-se o cheiro do animal à distância. Basta macerar na mão e colocar dentro das narinas", explica o guia do Seringal, que ao longo das trilhas junta os conhecimentos adquiridos com "o povo do sul" - forma como se refere a biólogos, geógrafos e demais acadêmicos dos estados abaixo da Amazônia - com o de anciãos das comunidades indígenas remanescentes, juntando de maneira particular e extremamente inteligente com um pouquinho de cada um desses mundos.

Foto: Bruno Cesar Dias

Fotopainel do Memorial Wilson Pinheiro mostra os seringueiros no empate, nome como chamam as greves de enfrentamento

Mas nem sempre o conhecimento esteve em prol da mata. No final do século 19, a explosão da indústria automobilística levou ingleses e americanos aos países tropicais em busca da seringueira. A Hevea brasiliensis já fazia parte de nossas matas, e a descoberta levou à proliferação das monoculturas no Acre, Amazonas e Belém. O dinheiro do apelidado "ouro verde" levantou cidades, teatros e impérios na mesma velocidade que a bancarrota derrubou seringalistas e empresários dependentes dessa cultura, num período de cerca de 40 anos, quando as plantações asiáticas demonstraram-se mais produtivas, mesmo que com produto de inferior qualidade.

De lá para cá, o método de extração pouco mudou. São dois turnos de aproximadamente oito horas cada. "Começa-se pela 'perna direita', fazendo os sulcos nos troncos e colocando os copos de recolhimento. Ao final, faz-se o rodo (o retorno), voltando pela 'perna esquerda' e recolhendo o leite da produção", explica Nilson Mendes. A árvore precisa de pelo menos 20 anos de idade para começar a extração e, se bem cuidada, produz leite o resto de sua vida. Entre uma seringa e outra, é necessário o intervalo de dois meses, realizando uma rotação na extração da seiva.

Ao lado da seringueira, a castanheira é outra cultura central dessa parte da Amazônia. Suas grandes árvores produzem cocos recheados com uma semente branca, de sabor característico e grande oleosidade, batizada de castanha do Pará devido ao porto de escoamento, em Belém. O nome é motivo de brigas, pois é o Acre o principal produtor nacional. Enquanto isso, os bolivianos seguem na frente na balança comercial, firmando-se como os principais produtores, vendendo o fruto como brazilian nut no mercado internacional.

Novos rumos da mata


Instalações da pousada Seringal Cachoeira, que emprega e capacita mão de obra local

A decadência da borracha quase acabou com os seringais nas décadas de 1970 e 1980. Em nome da posse da terra para pecuária e monoculturas estranhas ao bioma, como a cana de açúcar, fazendeiros expulsaram trabalhadores e arrasaram com segmentos inteiros de Amazônia. Os trabalhadores mobilizados partiam para o empate, o confronto direto com os capangas e jagunços dos latifundiários. Sindicalistas Wilson Pinheiro e Chico Mendes foram os principais artífices dessa luta e a qual pagaram com suas vidas, sendo assassinados em 1980 e 1988, respectivamente.

Passados cerca de 20 anos, a terra começa a ser reconhecida para quem é de direito, os trabalhadores da seringa, da castanha e demais extrativismos. As antigas posses, que proibiam a exploração autônoma, começam a mudar seu estatuto jurídico, a começar pelo Cachoeira.

O governo do Acre transformou a área no primeiro assentamento agro-extrativista, permitindo que as 30 famílias residentes possam ter seus roçados para plantar milho, feijão, arroz e mandioca para seu próprio sustento.

A dimensão extrativa extrapola os frutos da mata, e apresenta o eco-turismo como processo de desenvolvimento do século 21. A população foi capacitada para atendimento em hotelaria, noções de línguas estrangeiras e regras de manipulação alimentar e aplica os conhecimentos no trabalho da pousada, equipada com seis suítes, um bangalô presidencial e dois belichários (masculino e feminino, comportando vinte turistas, cada). O conjunto será licitado para a entrada de um operador turístico. "Quem esteja aqui, vamos continuar brigando para preservar a floresta. É dela de onde tiramos roupa, remédio e alimento, mantemos vivas nossas famílias e construindo as condições para que as próximas gerações continuem a aproveitar seus recursos", comenta o mateiro.

São várias as possíveis trilhas dentro do seringal e os caminhos são sinalizados como se apontassem para o ar. Ou para a observação de pássaros. Segundo Nilson, os animais apontam o caminho para o homem. "Quando chover, observe as formigas, que vão dizer se a chuva será prolongada, forte ou curta. Vai depender da terra e do material que estiverem carregando para a toca delas". De todas, a tucaneira é a mais perigosa. Mesmo não letal, sua picada causa inflações dolorosas.

A Floresta guarda ainda outros tantos tesouros, pequenos e delicados como o jaborandi, a menor planta comercial do bioma, ou gigantes como a samaúma, a maior árvore e por isso dona do título Rainha da Floresta. "Essa árvore aqui salvou muito nordestino. Quando o seringueiro novo não tinha como voltar ele procurava a samauma e escorrava as costas, passando aqui a noite, observando tudo, com medo da onça comer. Ou enfiava umas palhas na entrada da sapopemba - as enormes raízes da árvore - e dorme aí dentro. Até mesmo os animais respeitam o homem quando dentro da sua casinha. Quando não há problemas de cadeia alimentar, a onça não ataca", explica Nilson Mendes. Já o bicho-homem ainda tem muito a aprender com a floresta e seus moradores.


Atualizado em 6 Set 2011.