Guia da Semana

Foto: Instituto Chico Mendes

A liderança seringueira com o então dirigente metalúrgico Lula

Francisco Alves Mendes Filho hoje teria 67 anos. Do seu assassinato, já se passaram 23. No entanto, Chico Mendes é quase um mártir no Acre, nomeando diversos parques, escolas e centros de memória em todo o estado. Batiza também a divisão do governo federal responsável pela proteção da biodiversidade. Tamanha presença demonstra a força de seu nome no debate ambiental do século 21 e deixa claro que tanta luta não foi em vão.

Essa história começa em Xapuri, cidade de 8 mil km² e 14 mil habitantes. A "princesinha do Acre" pouco mudou nos seus 102 anos. À margem do Rio Xapuri, a 'Rua do Comércio' - como é conhecida a rua 17 de Novembro - ainda concentra lojas e bares, ditando o ritmo urbano, e dos dois grandes colégios, alunos saem aos montes ao final da aula, voltando pelas ruas de casario em estilo inglês do final dos anos 1800. Uma delas foi a última morada do líder seringueiro.

"Aqui dentro pouca coisa foi mudada", diz a monitora Josinara Ferreira, de 17 anos. Não há laje nem forro de gesso, e o ar circula pelo alto, atravessando a sala, o único quarto da família e a cozinha. Sob a mesa de jantar ainda estão as pedras de dominó que Chico jogava com os policiais militares responsáveis por proteger sua vida. Era noite naquele 22 de dezembro de 1988 e, enquanto os guardas jantavam na cozinha, Chico Mendes se preparava para tomar banho no único banheiro da casa, que ficava no lado de fora. Foi até o quarto, pegou a toalha que ganhara de presente de aniversário e a lanterna e foi até a porta da cozinha. Ao abrir a porta, não teve tempo de se proteger defender dos disparos de Darcy Alves Pereira. Caminhou até o quarto e tombou.

Foto: Jannyne Barbosa

A casa-museu, que pouco mudou em 23 anos

Em frente à casa, foi construído o Centro de Memória, dirigido pelo Instituto Chico Mendes e presidido pela filha, Elenira. Documentos, condecorações internacionais e pertences pessoais falam de um homem viajado, porém simples. Ao lado da cena do crime, uma outra casa foi transformada no Memorial do seringueiro, que preserva hábitos e instrumentos utilizados por esses trabalhadores, como o 'vulcão' - uma chaminé de argila rudimentar feita para queima do látex - seringas e até um fogão de barro.

Wilson Pinheiro, o pioneiro

"Aqui começamos a trabalhar cedo, e ele tirava muita seringa, às vezes chegava a ficar 30 dias dentro da mata, cortando seiva sem parar, até se tornar sindicalista. Era muito popular, gostava de jogar baralho, bola, fumar e conversar com os amigos", detalha o primo Nilson, 20 anos mais jovem. Chico aprendeu a ler em casa, e foi na juventude que teve seus primeiros contatos com a política: primeiramente, com um velho militante comunista de registro irregular - conhecido apenas como Távora - que vivia refugiado entre as selvas do Acre e Bolívia. Depois, com o sindicalista Wilson Pinheiro. "Para se falar de Chico Mendes, tem de se falar do Wilson. Lembro do Chico conversando com o meu pai, que dizia o que deveria se fazer se ele, Wilson, viesse a faltar", diz Inamar Pinheiro.

Voltamos ao ano de 1978. Wilson Pinheiro é eleito presidente do Sindicato dos trabalhadores rurais de Brasileia, município mais desenvolvido da região, vizinho de Xapuri e da boliviana cidade de Cobija. Em plena ditadura militar, a entrada maciça da monocultura e da pecuária elevava a tensão política no estado. Ser sindicalista na época era viver todos os dias no empate, nome do confronto entre fazendeiros e seringueiros. Um desses enfrentamentos é até hoje lembrado como 'operação pega-jagunço'.

"Aconteceu entre Rio Branco e a cidade de Boca do Acre. O sindicato juntou trabalhadores de Brasileia e Xapuri e para lá foi enfrentar os jagunços contratados pelos fazendeiros. Eles preferiram fugir, deixando uma caminhonete cheia de armas nas mãos dos seringueiros", conta o advogado Gumercindo Rodrigues, estudioso do movimento. Dois anos depois do confronto, Wilson Pinheiro seria assassinado com cinco tiros dentro do sindicato. A sede hoje é um memorial em sua homenagem, guardando fotos, documentos e mais tantos outros instrumentos de trabalho, como a poronga - capacete com pavio e querosene utilizado para iluminar a floresta à noite -, os copos coletores e os sapatos de borracha. Pinheiro batiza também a ponte do município entre Brasil e Bolívia.

"A morte de Wilson Pinheiro fez o movimento ganhar força em Xapuri, e Chico percebeu que só a luta sindical não bastava", relata Nilson Mendes. Ainda secretário do Sindicato de Brasileia, Chico Mendes lança sua candidatura a vereador de Xapuri, sendo eleito em 1976 pelo então Movimento Democrático Brasileiro (MDB).

No "sul", o então metalúrgico Lula articulava a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e soube da luta seringueira e para o Acre foi. Em 2 de maio, Chico anuncia sua filiação ao novo partido. Nos anos seguintes, lançou-se candidato a prefeito e deputado estadual. Não voltou a ser eleito.

Seiva e sangue

Foto: Jannyne Barbosa

A estátua do líder está espalhada pelo estado, com réplicas em Xapuri e Rio Branco

Ao sul e longe do centro de Xapuri, o Seringal Cachoeira era uma das unidades mais produtivas da região. Suas terras foram compradas em 1977 por clãs fazendeiros. Por 10 anos, elas lutaram por um documento que lhes desse a posse e impedissem que fossem expulsos.

Em maio de 1988, o exército garantia a transformação de 50 hectares em pasto. No entanto, os fazendeiros já haviam derrubado mais 150 hectares de floresta. Chico Mendes, então presidente do sindicato rural da cidade, reconhecido e premiado internacionalmente pela ONU e pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), lideraria um dos seus últimos confrontos.

"Decidimos que, mesmo sem poder pegar em armas, partiríamos para o empate. Ficamos acampados por três meses. Ao final, marchamos em fileira para o confronto final. Crianças e jovens na frente, depois mulheres e homens. Quando nos deparamos com o exército, as professoras e crianças começaram a cantar o Hino Nacional. No mesmo instante, o comandante pulou a frente das armas, pois viu que não queríamos guerra, e sim a paz", relembra Nilson Mendes, na época com 25 anos e ainda sem seus três filhos.

As lideranças decidiram que era hora de ocupar a sede do Instituto de Desenvolvimento Florestal. Enquanto isso, Mendes foi a Brasília negociar a criação da primeira reserva florestal brasileira. Ao voltar, soube que o acordo fora quebrado e os manifestantes atacados por jagunços e os filhos de Darli Alves, com dois baleados em estado grave. Chico voltou à capital federal e de lá só saiu com o compromisso público do então presidente José Sarney. Decretava também sua sentença de morte: sendo assassinado sete meses depois. Mandante e filho Darci foram presos um mês depois, e permaneceram presos até 1993, quando fugiram, permanecendo foragidos por três anos. Após serem recapturados no Pará, foram transferidos para a penitenciária de Brasília, e posteriormente, ganharam o direito à prisão condicional.

Um estado, um país, um mito

Chico Mendes não viu em vida a criação da tão batalhada reserva extrativista, que só aconteceria em 1990 e ganharia seu nome. Passaram-se ainda 12 anos até os moradores do Cachoeira tivessem a posse total das terras. Em meio a esse tempo, a legislação avançou. Hoje a opção agro-extrativa é melhor modelo de reserva, garantindo o direito à exploração econômica pelas famílias proprietárias. "Quando Chico pensou nas reservas, destacaram-se apenas os aspectos biológicos, como se não existisse ninguém dentro da floresta, nem que se ela tivesse seu próprio processo econômico", explica Nilson Mendes. Segundo o mateiro, a Amazônia conta com 87 reservas desse tipo. Dessas, apenas duas são seringais, incluindo o Cachoeira. Lá, há três anos, o governo do Acre ergueu uma pousada-modelo. O objetivo foi capacitar a população para o atendimento ao turista em busca das naturezas e histórias do Acre. O empreendimento será licitado para a exploração privada e já está aberto para recepção de viajantes.

Na capital Rio Branco, uma série de equipamentos culturais registra a memória do seringueiro. Há o Parque Ambiental Chico Mendes, localizado na saída da cidade e que conta com pista de corrida, minizoo, maloca indígena, reprodução do seringal e um memorial. Há também a Praça dos Povos da Floresta, onde está instalada a Biblioteca da Floresta na qual também consta parte do acervo do líder. A Via Chico Mendes, uma importante avenida da cidade, e outros prédios públicos batizados com seu nome são outros exemplos. A maioria foi inaugurada nas gestões de Jorge Viana, ex-governador por dois mandatos e atualmente senador da República pelo estado.

Homenagens também foram feitas pela União. Em 2007, o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) foi dividido e coube ao então recém-criado ICM-Bio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) a administração de 310 unidades de conservação e 11 centros especializados em manejo da fauna ameaçada de extinção. Juntos, totalizam 75 milhões de hectares - o equivalente a quase 10% do território brasileiro. Rômulo Mello, atual presidente da autarquia, declarou durante a abertura da Conferência Nacional do Meio Ambiente de 2009 que a trajetória de Mendes deve ser reverenciada por todos os brasileiros. "Ele é um herói nacional, um mártir da luta ambiental e contribuiu decisivamente para a criação das reservas extrativistas no país, permitindo que populações tradicionais como seringueiros, castanheiros, babaçueiros e pescadores possam usufruir dos produtos da natureza de forma legal e sustentável".

Tantas reverências para um líder e tão poucas para o outro provocam críticas. "O Chico Mendes sem o Jorge Viana não seria o mito que é hoje. O Wilson palestrava sobre a importância da floresta e fazia as coisas, enquanto o Chico Mendes ia lá fora, nos Estados Unidos para mandar fazer", dispara Inamar Pinheiro. Entre histórias, homenagens e críticas, sobrevivem o mito e o seu legado, que colocaram o Brasil e sua extrema biodiversidade na crista da onda desde a conferência Rio-Eco 92 e que hoje geram a discussão de um novo código florestal, buscando resolver antigas questões pelas quais Chico Mendes viveu.



Atualizado em 6 Set 2011.