Ator, escritor, diretor e excêntrico, José Celso Martinez Corrêa, ou simplesmente Zé Celso, dispensa apresentações cordiais. Pelo menos foi assim com o Guia da Semana. Com entrevista marcada no Teatro Oficina, o diretor surpreendeu e convidou os repórteres para o seu apartamento, na região da Avenida Paulista. Entre risadas e frases chocantes, Zé Celso fez um balanço de sua carreira e do Teatro Oficina, ícone da cultura brasileira, que completa em 2011, 50 anos.
E ninguém melhor que Zé Celso para falar sobre o local. Com a homologação do tombamento do edifício, projetado por Lina Bo Bardi, o prédio passa a ser considerado patrimônio histórico nacional e todo o seu entorno também fica protegido. Após uma verdadeira novela, que durou anos, com o apresentador Silvio Santos, finalmente o espaço (avaliado em cerca de R$ 33 milhões) não será demolido para se tornar um shopping, como pretendia o dono do Baú.
O grande sonho de Zé Celso agora é transformar o espaço ao lado do Oficina em um teatro estádio, nos mesmos moldes das grandes arenas gregas. Enquanto isso não acontece, a vida continua. E no caso do Oficina, ela segue com a peça Macumba Antropófaga, que entra em cartaz para marcar o cinquentenário do espaço. O enredo resgata o espírito do manifesto oswaldiano, relembrando toda a influência do modernista Oswald de Andrade no grupo, que veio desde a estreia do espetáculo O Rei da Vela, em 1967.
Veja uma entrevista exclusiva que o Guia da Semana realizou com o diretor em 2008, quando ele comemorava então os 50 anos do grupo fundador do teatro, o Uzyna Uzona.
Guia da Semana: Qual é grande diferença do espaço depois de 50 anos?
José Celso: Existe uma intensidade maior que antigamente. Eu acho que nós vivemos em um período de muita desconstrução. Na época era bom também, teve o surgimento da Bossa Nova, Cinema Novo, o país cresceu na democracia, foi uma série de coisas até o primeiro golpe. Logo depois veio o AI-5 e foi muito violento, época de repressão total, exílio. Eu sofri, eu fui torturado, mas eu to cagando pra isso. Eu resisti, eu sobrevivi. Os atores mais sensacionais e com uma energia maravilhosa estavam na época de Roda Viva. Mas a oportunidade de retorno foi maravilhosa. Tivemos uma vida subterrânea maravilhosa, uma clandestinidade, o exílio. Foi sempre vivido com uma coisa que o teatro dá que é uma situação de poder criar dentro dela, ela não pode te destruir, então você vai pegando o veneno e vai ficando imune e virando o remédio. Eu não sou de resistência, muito pelo contrário, a gente tem que ser irresistível sempre. Deve sempre resistir a cada obstáculo que aparece. Você tem que inventar tudo de novo a cada momento e a cada instante.
Guia da Semana: Suas peças têm um conteúdo erótico muito forte. O que é erotismo pra você?
Zé Celso: É a alma, é a eletricidade, é o tesão, uma coisa que você mede com um aparelho. É vida, é a mesma coisa que dá na música, na arte. Uma pessoa que não cultiva o tesão, não tem talento para ser artista. Nossas peças são muito eróticas, damos um valor enorme para isso, existem cenas lindas em que o Papa é enrabado por uma hermafrodita. Eu tenho planos de criar uma faculdade antropófaga onde haja um bordel. Onde tenha iniciação sexual, porque educação sexual não quer dizer só que tem que usar camisinha. É muito mais. Tem toda uma filosofia tântrica e entre outras coisas muito diferentes do papai e mamãe ou aquelas perversões baratas e aquele amor meio sem erotismo. Erotismo é tudo, é a alma da vida. Sexo sem erotismo não é nada.
Guia da Semana: Mas muita gente se choca com as cenas de sexo nas suas peças. Como encara isso?
Zé Celso: Eu adoro, eu adoro sacanagem. Eu dou uma importância muito grande ao amor, todas as formas de amor e a pornografia também. As putas e os putos antigamente ensinavam o povo a viver. Nós brincamos com isso, mexemos com todos os tabus... e o que eu tava falando mesmo? (Alguém lembra o Zé ao fundo). Ah sim, inclusive a gente não pode ter medo de Eros, a gente tem que cultuar porque a gente vem disso. Claro que inventam muitas coisas, como o casamento, que tem que assinar papel, viver eternamente, só pode transar pra ter filho, mas tudo isso já era. A igreja insiste, mas cada vez mais o mundo descobre o corpo e o teatro também. O teatro é uma forma de culto ao corpo. Tem que rolar uma putaria.
Guia da Semana: Você não acha meio hipócrita a sociedade que assiste às suas peças e fica chocada e logo em seguida sai e vê a era do funk, por exemplo?
Zé Celso: Claro. É que o teatro ficou considerado um lugar de moral. As pessoas iam ao teatro para serem educadas, se instrumentalizar. Mas os teatros gregos sempre foram a favor do amor. Amor erótico gostoso que dá prazer. Por exemplo, eu tenho muito respeito pelas prostitutas que têm relações sexuais com qualquer um, eu tiro o chapéu. Porque a pessoa tem a capacidade de dar amor e fazer uma performance, porque na verdade o amor é uma performance.
Guia da Semana: Como é manter a chama do Oficina acesa durante tanto tempo?
Zé Celso: Tesão (risos). Acordar e dizer, tô vivo. Outro dia me perguntaram qual é a palavra que eu mais falo, e eu respondi: orgia, e a que eu mais escuto: não. É essa luta entre sim e não.
Guia da Semana: Como é lidar com a vida de artista, ator?
Zé Celso: É uma delícia, não existe vida melhor. Custa caro, é difícil, você pena, mas eu não troco por vida nenhuma. Se eu tivesse que fazer tudo de novo, eu faria.
Guia da Semana: Você fez faculdade de direito. Chegou a exercer a função?
Zé Celso: Fiz e usei, exerci a favor da arte.
Guia da Semana: Você sempre escutou muito não, foi reprimido e perseguido. Em momento nenhum você teve vontade de largar tudo?
Zé Celso: Não, nunca. Houve épocas em que eu não podia fazer porque a polícia e a censura não deixavam. Me prenderam, me torturaram, tive que mudar para outro país, mas tudo bem.
Guia da Semana: Você sofreu muito com essa punição por parte dos patrocinadores?
Zé Celso: Sempre, eles não investem porque não querem vincular suas marcas a nossa imagem. É um jogo muito louco e dificílimo. Pagamos um preço alto por isso. Olha o meu apartamento, por exemplo, eu não tenho nada, mas não me arrependo. Eu quero ganhar mais dinheiro, eu gostaria de ser rico. Eu quero ser rico sem deixar de ser eu mesmo, sem abdicar do que eu sou. Você já imaginou um Gianecchini pousando nu? Não pode, ele mesmo não se permite. Para fazer sucesso nesse esquema você tem que se castrar.
Guia da Semana: Como você imagina o Teatro Oficina daqui a 50 anos?
Zé Celso: Eu não imagino. Eu imagino isso aqui agora. Estou cultivando tudo que aprendi com Cacilda (Becker), Oswald (de Andrade), Shakespeare. Nós todos aqui queremos muito mais do que celebridade, nós queremos a imortalidade, deixar um vestígio profundo nas pessoas, tatuar nossa marca. Chegar ao amor pelas espécies. Antes da celebridade quero a eternidade.
Guia da Semana: Como você gostaria de ser lembrado?
Zé Celso: Eu não quero ser lembrado! Eu quero é ser comido. Eu quero inclusive que quando eu morrer me façam de picadinho e joguem em uma montanha e uma porção de urubus me comam. Eu adoro urubu. Sou antropófago.
Atualizado em 19 Nov 2012.