Christine Rice e Bryan Hymel, os protagonistas da recente versão do Royal Opera House
O arco do violino executa a abertura enquanto a câmera 3D acompanha os passos de uma heroína movida pelo desejo, unindo numa única obra a efervescência do final do século 19 com o avanço tecnológico dos dias presentes. Produzida pela americana Real D e montada pelo Royal Opera House, de Londres, a primeira versão de Carmen com essa badalada tecnologia cinematográfica reforça o caráter de vanguarda da obra sem se afastar do universo popular a qual pertence, mantendo-se extremamente atual e humana.
A reportagem do Guia da Semana assistiu ao espetáculo a convite da rede Cinemark, que comprou os direitos de exibição e realizou as projeções em 27 salas de diversas cidades brasileiras entre fevereiro e março. Mas, antes de entrar numa análise mais detalhada do filme de Julian Napier e da montagem de Francesca Zambello, é preciso antes saber um pouquinho mais dessa cigana ladina e voluptuosa que há mais de cem anos seduz a humanidade.
Vanguarda e transgressão
Festa, sangue e traição extravasam pelos acordes e melodias da obra, escrita em 1874 pelo parisiense Georges Bizet (1838-1875). Mas o começo dessa história não foi muito promissor: A primeira montagem foi um retumbante fracasso. "O público não estava preparado para tudo que estava acontecendo ali no palco: mulheres fumando em cena, personagens e cotidianos envoltos e uma heroína completamente diferente para os padrões da época", argumenta Mario Videira, professor de história da ópera na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-USP).
Espanha, arredores dos ano de 1830. Originário de Navarra, o cabo Don José é destacado para Sevilha. No entanto, sua trajetória é cruzada pela cigana Carmen. Ele a evita primeiramente, mas a ladina o seduz e eles se apaixonam profundamente, levando a Don José abandonar o Exército. No entanto, o coração dessa operária de uma fábrica de tabaco é um pássaro livre e rebelde, e decide viver com o toureiro Escamilo, levando ao dramático final.
Satânico, provocativo e farsesco foram alguns dos adjetivos atirados contra a obra, que estreou na Ópera Comique em 1875. Seu compositor morreria meses depois, aos 36 anos, sem testemunhar a mudança da opinião das elites, que passou a lhe fazer elogios rasgados. Carmen caíra no gosto do povo, chegando à marca de mil apresentações executadas pelas mais diferentes companhias por toda Europa.
Foto: IMDb
Cena da montagem cinematográfica de Carlos Saura, de 1985
Para a professora Carmen Gadelha, diretora do curso de Direção Teatral da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Eco - UFRJ), o apelo do melodrama explorado pelas inúmeras montagens é um dos motivos para o sucesso da ópera. "Carmen é essa ópera popular tão atraente porque é muito ligada ao melodrama. E digo isso não apenas pelo livro original de Prosper Mérimée ou pelo seu libreto, mas, principalmente pelas inúmeras montagens, leituras e apropriações feitas ao longo do tempo".
Além da envolvente narrativa, Carmen se destaca também pela construção melódica das composições. "Para criar essa cor, Bizet usou ritmos do folclore hispânico, notadamente nas aberturas de atos e nas árias mais famosas como Seguidilla (Près des remparts de Seville) e Habanera (L'Amour est um oiseau rebelle). Essas construções melódicas são retomadas como ganchos ao longo das canções, recitativos e partes instrumentais, dando unidade musical do primeiro ao último ato.
A complexidade da história é refletida na dificuldade de sua encenação. "O drama da ação se revela na música, casando melodia com texto numa clareza e elegância como poucas partituras apresentam. Isso exige muito dos protagonistas e principalmente do coro", conta Alan Hendrie, cantor lírico com mais de 200 óperas na bagagem e professor do Conservatório Maestro Paulino, em Ponta Grossa, Paraná. Sua última participação em uma montagem de Carmen foi como tenente Zúniga, na montagem do produtor John Copley, em meados da década de 80, em seu país de nascimento, a Austrália.
Video: You Tube
Abertura e início do Quarto Ato de Carmen, montagem produzida para canal de tevê canadense, na década de 90, com coro da Orquestra Revolucionária e Romântica, dirigida por John Eliot Gardiner
Nova arte ou artimanha do mercado?
A reportagem do Guia da Semana assistiu a uma exibição exclusiva para a imprensa em 14 de março. Em que pese a qualidade da orquestra do Royal Opera House e a beleza realista da cenografia e figurinos, a transposição da cena teatral para o plano cinematográfico sofre justamente pela tecnologia da badalada câmera. O efeito ganha vida nos closes, quadros mais fechados e nos momentos em que os cantores valorizam as pontas do palco, como crianças zombeteando dos guardas e pulando em direção à plateia, ciganas lavando roupas e até o desembainhar das espadas, atingindo literalmente o público.
No entanto, nos planos abertos e nas panorâmicas, o efeito é basicamente nulo e as cenas perdem o foco, o que enfraquece o espetáculo. "Os planos amplos no geral foram mais complicados por conta da dificuldade de decidir onde focar", respondeu por e-mail a diretora cênica Francesca Zambello. Mesmo com o problema, para ela, ter feito parte dessa montagem foi uma rica experiência. "Acredito que esta é uma nova forma de arte e que continua em evolução. Os desafios serão como criar shows para 3D e como aprimorar apresentações ao vivo que utilizem essa tecnologia", complementa.
O professor Alan recebeu com bom grado a versão em 3D para o cinema. "A tirar pelo elenco (com a mezzo-soprano Christine Rice e o tenor Bryan Hymel nos papéis principais) são todos cantores bem novos, o que denota uma preocupação com o aspecto visual da montagem, pois isso é apreciado no cinema", avalia Alan Hendrie.
Já a professora Carmen Gadelha problematiza o uso da câmera a partir do ponto de vista da transposição das linguagens. "É preciso entender que Carmen já nasce sobre o signo da multiplicação de meios e linguagens de uma obra de arte, que passa do livro para os palcos de ópera e depois para os de teatro, balé e quadros cinematográficos. O importante é pensar como se de fato há transformação de linguagem por conta dessa via tecnológica. Veja, é fantástico que a ópera saia do espaço fechado e tradicional do teatro e chegue a inúmeras plateias por telonas, telinhas e DVDs. Só me pergunto se o 3D acrescenta algo para que surja uma forma de arte a partir desse hibridismo ou se é apenas um atrativo comercial a mais, servindo somente para multiplicar o público pagante", fundamenta a professora. Papo cabeça.
Se a versão em 3D é marketing para atrair público ou expressão de uma nova forma de arte, pouco importa. Carmen é livre até nessa hora, e seguirá a encantar o mundo nas inúmeras montagens que continuarão a contar a história da cigana de Sevilha que seduz um jovem soldado, e, ao trocá-lo por outro homem, pagou com a vida a liberdade de amar.
Atualizado em 6 Set 2011.