O trabalho da artista australiana Patricia Piccinini é um enigma a ser desvendado por cada um de nós. Em um primeiro momento, suas obras causam estranhamento e até mesmo repulsa, entretanto, em um segundo instante, ela consegue aflorar nossas sensações mais profundas e belas, tirando-nos a mais sincera empatia, como se fosse um encontro entre o estranho com os nossos melhores sentimentos.
Para quem ainda não conhece, a artista fala sobre criaturas imaginárias e fantásticas, baseadas em pesquisas de ciência genética e análise do comportamento humano. Assim, ela explora a incerteza entre o futuro geneticamente modificado e a imaginação livre do sonho coletivo, os medos e os fascínios do inconsciente.
Com técnicas de cinema, escultura e animação, Patrícia as mistura com o conhecimento científico para produzir imagens tridimencionais de seres que hoje nos parecem surreais, mas com os quais, com o passar do tempo e a convivência, poderíamos nos acostumar.
Na obra acima, chamada O Tão Esperado, podemos ver a transformação do tempo e o amor entre as espécies. A criatura, aparentemente mais velha, foi inspirada em um dugongo (animal que deu origem ao mito das sereias) e descansa no colo de um menino. Assim, vemos que existe harmonia entre ambos no plano real, e também no plano do sonho que compartilham, nos mostrando que o tempo da genética ultrapassa o tempo da consciência da vida e, ainda, que o tempo de espera torna-se irrelevante diante do tempo do amor.
Além de nos colocar em contato com seres diferentes e, ao mesmo tempo, parecidos com a nossa espécie, a artista também nos questiona se todo tipo de ser tem que ser criado a partir de algo que já tem vida, e nos pergunta: e se objetos comuns, como um sapato, pudesse se desenvolver e ganhar autonomia? Na obra, ela reproduz uma bota de meia ponta que não calça o ser que lhe transborda. Sim, ela tem vida, da qual nasce o desconhecido e apesar de existir na forma de uma peça utilitária, ganhou carne e fibras, como as nossas.
Outro ponto abordado é a questão do feminino e o sexual. Com estruturas de plantas, as Metafloras nascem de longas hastes, das quais brotam flores de carne, cabelos, línguas e garras. Necessitadas de mais do que sol e água para se desenvolverem, também nos fazem pensar nas consequências do cultivo de alimentos geneticamente modificados.
Ao mesmo tempo, nos coloca em contato com as Vanitas, que nas artes é um tipo de obra simbólica, associada ao estilo de natureza-morta. Em latim, significa vacuidade, ou futilidade, mas na História da Arte, é interpretada como vaidade. Assim, o uso do cabelo humano simboliza a força física, a virilidade e a sedução.
A Flor Bota, acima, é a obra mais recente da artista. Feita a partir de uma bota de couro, simboliza a transformação de um animal em um objeto, que vira vegetal. É uma flor que põe ovos e tem em si um desejo de reprodução e, consequentemente, de sobrevivência. Posta em uma sala e rodeada por flores em forma de ovário, articula a fragilidade da flor com a assertividade da bota no universo feminino.
A mostra toda nos fala sobre o fato de que, na tentativa de humanizar tudo, podemos perder e quebrar uma linha que divide o lugar das coisas e o lugar dos homens. Assim, Patrícia nos provoca, questionando se poderíamos criar seres para nos substituir em tarefas mundanas enquanto nos ocupamos com tantas outras coisas da vida moderna, ou se poderíamos delegar o amor e a procriação para um objeto, como uma bota flor.
Além disso, e se criássemos animais para proteger espécies mais frágeis? Foi assim que Patrícia deu vida a criaturas de rosto ameaçador, mas bem intencionadas. Nessa obra, o encantamento está nos olhos da criança e o estranhamento nos nossos. Assim, nos perguntamos: o que é bonito? Quando é que aprendemos a rejeitar outros seres? Inspirada em uma frase do pensador alemão Goethe, que diz que "a beleza é um convidado bem vindo em qualquer lugar", o ser aparentemente do mal, divide cena com um pavão, um animal cuja a maior vantagem seletiva é a beleza. Suas penas coloridas pouco servem para lutar ou caçar, mas destacam-se por sua exuberância, o que nos coloca a pensar sobre a percepção e a construção do que é realmente considerado belo.
A experiência de visitar os corredores do CCBB nos possibilita entrar em um lugar onde a convergência entre ciência e consciência aconteceu, onde o tempo se fundiu e o passado e futuro coabitam lado a lado, onde a imaginação se libertou e passamos a ser agentes e pacientes das transformações que um dia iniciamos.
Ao final da mostra, fica claro para nós, visitantes, que dentro de toda a aparente anormalidade, uma essência humana permanece latente e que a possibilidade de amor ainda existe, permitindo que, depois de rejeitarmos, podemos aprender com elas e ver, então, que é possível existir um amor à segunda vista.
SERVIÇO:
ComCiência
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil
Quando: Até 4 de janeiro de 2016
Horário: Segundas, quartas, quintas, sextas, sábados e domingos, das 9h às 19h
Quanto: Gratuito
Por Nathália Tourais
Atualizado em 7 Nov 2015.