"Manter essa cultura [mineira] é um trabalho árduo, mas muito gratificante"
Quitandeira, salgadeira, doceira, feirante, professora, diretora de escola, vereadora, catequista e quase-freira foram algumas das funções que Lúcia Clementino Nunes, mais conhecida como Dona Lucinha, desempenhou ao longo de seus 76 anos. No entanto, pelo bem do nosso pecado gastronômico, a quituteira - ou quitandeira, para os mineiros -mais famosa das Gerais rendeu-se à paixão pela cozinha e tornou-se a maior referência da culinária mineira. Sua rede de restaurantes já está com 24 anos e quatro filias: três em Belo Horizonte e uma em São Paulo. Porém, o que nem todos sabem é que, além de ter um exímio talento para a alquimia da cozinha, ela também é uma pesquisadora nata, devido à sua imensa curiosidade em saber as origens e os modos de preparo dos pratos.
Essa veia investigativa acarretou no livro História da Arte da Cozinha Mineira, que acabou de ser relançado, em sua terceira edição, pela Larousse do Brasil. As 176 páginas retratam esmiuçadamente os primórdios da culinária mineira e seus dois pilares de formação: a cozinha da fazenda e as comidas dos tropeiros, além de um capítulo especial sobre a evolução dos fogões. "Divido o livro em três segmentações: receitas, momento histórico e as lembranças, pois todo esse conhecimento foi fruto do aprendizado do dia a dia dela (Dona Lucinha)", explica a historiadora Márcia Clementino Nunes, que é uma das autoras e a primeira nora da quitandeira - que tem 11 filhos. Ela completa que a obra é o registro atual mais completo da cozinha mineira e que nenhuma das receitas foi inventada, são todas tradicionais e resgatam ingredientes que já estavam perdendo sua importância, como a mandioca, o milho e a cana-de-açúcar.
Foto: Divulgação/Site Oficial
A tríade que influenciou a cozinha mineira, indígena, africana e portuguesa, é representanda no prato frango com quiabo e angu
Primórdios da comida mineira
O Estado de Minas Gerais sempre dependeu muito do abastecimento dos tropeiros, pois sua economia era voltada para extração de ouro; assim, a produção de alimentos era baixa. Essas comitivas faziam o comércio de animais e mantimentos entre os entrepostos e vilas, no século 18. De acordo com Márcia, eles desenvolveram um tipo de culinária cuja base era farinha, feijão, rapadura e carne de lata - guardada na gordura. "Quando comecei a aprender a cozinhar, entendi que a cozinha dos tropeiros nasceu da cozinha da fazenda", revela Dona Lucinha. Instigada por sua curiosidade de "mocinha", foi investigar e descobriu que as escravas preparavam para a tropa os alimentos que podiam ser misturados com farinha e, ao final de cada pouso, eles faziam um mexidão e o que sobrava, guardavam no bornal de couro para seguir viagem. A cozinheira completa que eles comiam "de capitão e arremesso", ou seja, faziam uma "bola" com a mão e arremessavam sem encostar na boca, para que todos pudessem comer da mesma panela.
Já os pratos da fazenda são mais molhados, ensopados, o que tornaria inviável para a alimentação dos tropeiros. "Muitas comidas combinavam com o angu, que é a base para a culinária do campo. Havia horta ao lado da cozinha, para buscar verduras, e sempre usavam uma pimentinha - de preferência malagueta, para dar aquele toque", informa Márcia. Dona Lucinha discorre sobre um prato que resume todas as principais influências da cozinha mineira: o frango com quiabo e angu. Segundo ela, a primeira contribuição veio dos índios, o milho (base do angu) era muito usado por eles. A segunda foi a africana, em que o quiabo era um ingrediente típico. Já a portuguesa foi a terceira e trouxe o uso da carne de frango para os pratos regionais.
Para as pessoas que evitam se render ao deleite da culinária de Minas por causa dos pratos "pesados" ou gordurosos, Dona Lucinha contesta e revela o segredo: "A comida precisa ser leve, por isso, precisamos 'tirar a maldade da carne'". Essa expressão indígena significa que a carne precisa perder a gordura e o sangue excedente e, para isso, deve ser ferventada na cachaça e no limão. Outra ideia errada que muitos costumam ter é de que o pão de queijo é um prato dos primórdios dessa culinária; na verdade, faz parte da evolução das receitas típicas. "O gado demorou para se estabelecer em Minas Gerais e, assim, para obtermos o queijo. Para assar o pão de queijo, precisávamos de um forno que conseguisse regular a temperatura. Essa receita é fruto de um momento histórico", fala a quitandeira.
Foto: Divulgação/Site Oficial
Elzinha e Dona Lucinha representando o Brasil no Prêmio James Beard Awards, em Nova York
Mineirinha arretada
Essa figura da gastronomia nacional é mais do que uma vencedora, pois além de conseguir criar seus 11 filhos, deu aulas para as crianças das fazendas e ainda cozinhou para fora. Por volta dos seus 30 anos, foi convidada para chefiar a cozinha do requintado Hotel Palace, em Belo Horizonte, mas preferiu passar seus conhecimentos a um colega de profissão, ceder esse cargo e abrir seu próprio restaurante. Um ano depois, foi necessário inaugurar outro estabelecimento na capital mineira, devido à grande procura dos clientes. "Orgulho-me de até hoje não utilizar nenhum ingrediente enlatado nos pratos dos restaurantes. Também nunca contratei uma pessoa que tivesse curso de culinária, pois gosto de formar o profissional. Sou uma árvore que precisa passar sua semente adiante", enfatiza Dona Lucinha. Ela completa que possui a responsabilidade nada fácil de preservar a cultura mineira, mas não guardar seus segredos a sete chaves. Sua intenção é sempre "subir nas montanhas, abrir os baús e gritar para todo mundo as histórias e as receitas" do povo de Minas Gerais.
Por estar sempre à frente de seu tempo em ideias e iniciativas, foi sempre requisitada para dar palestras em outros estados e no exterior. Faz parte, com sua filha e seguidora Elzinha, do movimento italiano slow food, que valoriza a cozinha regional e as comidas artesanais. Depois de todo esse legado, ainda restou tempo para dedicar-se aos menos favorecidos, com a fundação do Instituto Dona Lucinha. A instituição tem parceria com a classe policial de Belo Horizonte e baseia-se em um programa de alimentação nutritiva, mais direcionada às crianças e aos idosos. Essa organização é a menina-dos-olhos da cozinheira mineira e seu sonho é vê-la funcionando em outras capitais do país.
Atualizado em 7 Ago 2012.