Guia da Semana

Foto: André Gardenberg

Aspecto próprio do mundo civilizado, a solidão se desenvolve desde sempre como fruto inerente ao homem urbano. O perder-se dentre as artérias das cidades, a boemia do início do século passado, desprovida de companhias outras que não a poesia e a arte, o enclausuramento ideológico pós-guerras... Esses e tantos outros aspectos trouxeram à literatura e ao homem a compreensão de ser a solidão algo maior do que o existir só. Mas Trouxe também sua utilização como discurso e problematização acerca da realidade a partir de uma observação crítica.

Hoje, a solidão atua em níveis mais descontrolados pelo sujeito, que ora se vê sozinho ora se prefere assim. A troca da relação direta pela virtualização determina ainda mais perigos, sobretudo o da ilusão de ser possível reverter conscientemente o isolamento. Afinal, basta ligar o computador para se encontrar ou ser encontrado e deixar, assim, de se estar só. A solidão funda a condição do homem contemporâneo e determina a sua subjetividade um existir limitado a ela.

A ilusão de que optamos pela solidão traduz-se na incapacidade de revertê-la. Usamos da artificialidade do autoconvencimento para acomodar-nos e fingir desconhecer a impossibilidade de reverter nosso isolamento. E construímos nossas personas limitadas a uma camada de apresentação, como se fosse verdade ser apenas o que se revela ao outro e do outro o que enxergamos tão claramente. Esse achatamento sobre nossa identidade reflete mais do que sua banalização, traduz, sobretudo, a distância em dialogarmos com as multiplicidades.

Sobre a construção de identidades isoladas, existe a superficialidade de uma camada representativa, reduzindo o sujeito ao imediatismo de sua leitura, que Adam Rapp elabora nos personagens de Inverno da Luz Vermelha. Isolados neles mesmos, convivem à solidão de suas próprias vidas, incapazes de chegar no outro.

A distância, formalizada sob a subjetividade de uma geração acostumada a ser apenas assim, revela o sofrimento daqueles que não encontram outras maneiras de existir. A prostituta (Marjorie Estiano), cuja identidade trai a si própria ao se vender o personagem da mulher qual desejaria ser, o músico (André Frateschi), que impõe a destruição sobre qualquer envolvimento que lhe obrigue a se revelar diferente ao estereótipo que construiu de si, e o escritor (Rafael Primot), em fuga de si mesmo, que encontra apenas em sua história os artifícios para sua escrita.

O Inverno da Luz Vermelha cruelmente explode a condição solitária do homem naquilo que mais reconhecemos como contrário a ela: o amar. O encontro entre as pessoas leva-as ao ápice da condição de solitárias. Não é possível se aterem a qualquer sentido de encontro, pois não cabe mais ao homem o partilhamento sequer de seus sonhos e desejos. A peça invade nossos segredos e aponta o dedo sobre os esconderijos, onde guardamos nossos verdadeiros eus.

A coesão dos atores faz do que poderia ser um argumento juvenil e pessimista, um jogo de representações, de capacidades e entregas valorosas. São jovens talentosos em busca de algo que reclame ao mundo suas existências. Além disso, a escolha de um texto como de Rapp dialoga, com coragem e generosidade, as incertezas dos discursos. Um trio que se mostra disposto a romper a solidão fácil do teatro burguês e sua aceitação prévia, e, com lágrimas, ao fim, se deparar ao público. André, Marjorie e Rafael trouxeram de si os argumentos que nos prendem por quase duas horas nas poltronas, reclamando por um pouco mais.

Trabalho de uma eficiente direção que, igualmente, incomoda suas idiossincrasias e deixa serem os atores a estrela do espetáculo. Monique Gardenberg, como já revelou em seus trabalhos anteriores, sabe construir a cena e nela impor sua marca. Desta vez, a diretora doa sua criação para que algo a mais possa surgir, permitindo ao teatro, como raramente é feito, o argumento para nos aproximar o humano. Se Rapp enxerga na solidão do homem sua condição existencial, Monique e o elenco fizeram da manifestação teatral a contramão desse argumento. É possível, sim, reencontrar-se e estar junto ao outro, ainda que seja por duas horas, separados em poltronas vermelhas. Vermelhas, como curiosamente, já nos indicava o título do espetáculo, enquanto o inverno se revela no interior da solidão de cada espectador.

Leias as colunas anteriores de Ruy Filho:

A favor, seja como for

Apito final?

Espelhos no Escuro

Quem é o colunista: Ruy Filho.

O que faz: Diretor e dramaturgo.

Pecado gastronômico: Carpaccio de pato do Piselli.


Melhor lugar do Brasil: Salvador fora de temporada.


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Atualizado em 6 Set 2011.