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Há muito o que se discutir sobre algo que parece ser a mesma coisa para muitas pessoas, mas desejo e prazer não são necessariamente iguais. É evidente que o prazer pressupõe a existência do desejo, do desejar e de ter a vontade realizada em suas características. Contudo, nem todo desejo pressupõe o prazer como conseqüência, não quando entendemos por prazeroso tudo aquilo traduzido ao corpo, limitado sobretudo ao sentido sexual. Cabe ao desejo mais do que o gozo voluptuoso das fantasias ou o reconhecimento físico de sensações.
Desejar situa o ser humano entre diferenciais próprios da espécie, atribuindo-lhe a capacidade em subverter estados através da imaginação de seus ideais. Desejar, ainda, conduz o humano ao patamar de criador, e nesse parâmetro nada é mais incontrolável do que o próprio desejo, quase sempre oriundo de artifícios inconscientes de substituição ou preenchimento de ausências. Deseja-se aquilo que não se tem e que se quer ter. Deseja-se um outro. E há ainda o desejo pelo próprio desejar, fruto de uma absoluta solidão capaz de anular o reconhecimento de si mesmo como existente e real.
Nas sociedades modernas e suas supostas modernizações das relações humanas, desejo e prazer fundiram-se em sinônimos factuais funcionais, ao redesenhar de uma ordem política-social. Fora preciso admitir a pessoalidade do prazer para que as mulheres conquistassem o direito de senti-lo. E, consequentemente, desejar passou a ser mais do que querer, mas o de reconhecer a capacidade de se ter desejos.
Por outro lado, nunca o prazer, banalizado de maneiras subversivas à ordem e, posteriormente, ao mercado das sensações, revelara-se tão masculino. O homem, confrontando a veracidade do desejo feminino, tornou seu o mais estereotipado sentido de prazer, aquele limitado ao imediatismo da satisfação sexual. Entre o prazer do macho e o desejo feminino definiu-se nas entrelinhas um novo preconceito, o de que cabe a mulher desejar e ser desejada, enquanto ao homem cabe oferecer prazer e ser o realizador desse desejo.
As gerações atuais crescem sem qualquer parâmetro da subjetividade pertencente ao desejo, enquanto funda uma nova sociedade discursada sobre ingênuos valores. Confunde desejar com a busca pelo prazer, da mesma maneira que tentam afirmar que masculinidade e feminilidade são iguais quando ignoradas as óbvias diferenças.
Em "Lá fora, algum pássaro dá bom dia", de Priscila Nicolielo, a personagem narra sua trajetória que perpassa pela ingenuidade do desejo idealizado, o prazer como fundamento do desejo reconhecido e o temor da perda do desejo despertado. Mas de qual desejo Priscila trata? Não mais do que o do mais profundo e ordinário de todos nós, o de ser reconhecido, aquele que, ao se fazer real, nos proporciona igualmente realidade e existência. A solidão pertinente ao monólogo impõe ao ótimo trabalho de Gabriela Rosas a capacidade de transitar dentre as camadas desses desejos, enquanto a narrativa traduz as transições em tom ora poético, ora cômico, ora dramático e melancólico.
Mas enquanto a tônica feminina é trazida aos palcos pela dramaturga e atriz, a direção de Marcelo Rubens Paiva caracteriza a cena pelo olhar do macho que assiste a fêmea e se confunde entre as escolhas do homem que dirige e do homem que enxerga apenas no desejo o prazer imaginado, perdendo a potencialidade do que poderia vir a ser uma direção mais servil à poesia do texto.
"Lá fora, algum pássaro dá bom dia", é sem dúvida, o texto mais interessante de Priscila apresentado até agora. É torcer para que a dramaturga se permita ainda mais desejar, tal sua personagem, sem que caia nas armadilhas do prazer oferecido por tantos e tantos outros por aí. Curta, a peça com cerca de trinta minutos exibe o essencial necessário para que a fala se torne incômoda e o silêncio busque cumplicidade. E o que mais pode desejar um espectador que não ser atingido por seu próprio silêncio?
Leias as colunas anteriores de Ruy Filho:
Desabafo Eleitoral
Isolado de si mesmo
A favor, seja como for
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O que faz: Diretor e dramaturgo.
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Atualizado em 6 Set 2011.